"A fé não ajuda quando o problema é a possibilidade de fantasmas. Aliás, ela é que gera o problema, no caso."@joaogrando em 10 de agosto de 2012
Eventualmente submeto-me a um exercício mental vicioso que consiste em invocar algum sinal que manifeste a presença de uma entidade funesta, algo como "se o diabo ou algum espírito maligno estiver aqui, a luz irá se acabar agora"; da pergunta lançada seguem-se instantes de temor paranóide, tanto pela eventual resposta quanto pela masoquista necessidade de inquirir novamente a cada negativa, a fim de dar-lhe outra chance de confirmação, naquela atividade típica da mente aquecida quando não tem sua energia canalizada (cabeça vazia morada do diabo) e faz dela sua própria força implosiva - o raciocínio levando ao fim da razão por um colapso gerado pela saturação.
Imaginai agora o dia em que essa infeliz coincidência, através de uma falta de energia comum, acontecer? Pois que às vezes eu tomo banho de madrugada – e a madrugada até poderia ser definida, para fins deste texto, como qualquer horário à noite em que se está sozinho em casa –; ao fechar os olhos para enxaguar o cabelo, às vezes começo a pensar se ao abri-los não haverá alguma manifestação à minha frente; e nem me refiro a uma idosa já em estado de decomposição ou mesmo uma criança com a pele muito branca – para falar dos exemplos mais explorados nos gêneros de terror –, qualquer manifestação – poderia ser uma capivara – seria motivo para o pavor. Ou, talvez pior ainda, que em vez da sala que se apresenta ao sair do banheiro, abrir-se-ia um precipício.
Devido à intensidade, o momento se expande e toma para si o tempo total, a situação sugere-se permanente: já projeto que na manhã seguinte todas as pessoas que estão à minha volta se revelarão extraterrestres que me domesticaram, abrindo seus olhos luminosos para mim após décadas de simulação. Ou simplesmente a faceta mais remota do tempo, aquela em que definitivamente não estaremos aqui, nem eu, como ser vivo, tampouco nós, como espécie, torna-se o foco retumbante dos propósitos, que passam logicamente a serem inúteis a partir dessa escala.
Em meio a esses questionamentos, como é típica da reação medrosa, a nossa atenção eficazmente se maximiza e se preparar para o pior: o barulho da descarga do vizinho vindo pela janela do banheiro soa como o rugido de uma besta.
Independentemente do nível de realismo, qualquer possibilidade é assustadora caso a expectativa se confirmasse. A aparição abrupta de uma idosa, por exemplo, se defeso num ceticismo irrevogável, revelaria uma hipótese inda pior: a de que a figura então à minha frente seria a criação de uma doentia mente esquizofrênica e não um fantasma pertencente ao plano físico que interage (o plano, não necessariamente a figura) com todos. A perturbação, além de manifesta, seria privada.
Uma possibilidade cética e que anula o terror se baseia no modelo em que a realidade é um mosaico continuo e dinamicamente formado de modo aleatório pelas partículas elementares, de tal modo que o esperado (o banheiro ser simplesmente o banheiro) tem 99,999999999999999999999% de probabilidade de sê-lo, já que as formações estranhas a um banheiro (uma textura de pele, por exemplo) ficam invisíveis na medida em que não se engendram satisfatoriamente para alcançar a densidade de serem vistas, de virarem imagem. A partir desse sistema, a sequência combinatória das partículas gerará tudo ao longo de trilhões de trilhões de trilhões de anos, e ocorrerá de num futuro remotíssimo essa faixa organizada das combinações (o mundo real, como o conhecemos) se perder por completo, um retorno ao caos, uma desconstrução efetiva da materialidade (como a que a arte, como sempre, previu). Mas nada impede que a improvável combinação que gera uma figura ocorrer alheia à massa óbvia da probabilidade maior, como deve acontecer lá muitíssimo raramente em tantos espaços desabitados ou mesmo inabitáveis da atmosfera do nosso planeta (um caça-níquel quadridimensional de escala incalculável). Numa dessas, tu podes ser o azarado a presenciar tal raríssimo alinhamento, tal bug quântico sincrônico.
Aliás, em 2004, na ocasião da construção de um poema, defini minha teoria sobre a aparição de espíritos: quando morremos, nossa alma se decompõe junto com o corpo [vide o texto “Alma gêmea de tudo”]. As partículas são imortais, mas, a partir da morte do indivíduo, ficam livres e, como tais, tendem a se separar. Nalgumas pessoas a negação da morte fica embutida na vibração e, quando ela chega, a energia própria de cada partícula não está preparada para seguir em frente e, ao invés de partir, tenta retornar aonde estava (algo de Síndrome de Estocolmo) – uma vontade de voltar ao passado (ou mantê-lo como presente) elementar. No caso do fantasma, uma considerável parte das partículas tem essa energia retrógrada, então o esforço conjunto é tanto que conseguem se reunir de maneira suficiente para atingir parcialmente a materialidade, mas, já sem a misteriosa liga da vida, não podem sustentá-la por muito tempo (o que explica a aparição) e sem a densidade suficiente para ser sólido (o que explica a vaporização dos espíritos, que atravessam paredes, que sempre têm um grau de transparência nas representações ficcionais). Isso também explica porque a sabedoria antiga ensina que só os fantasmas de mortos com pendências em vida voltam. Porque eles são nada mais do que o esforço coincidente de várias partículas que se separaram em permanecer num lugar com o qual já tiveram o ciclo encerrado; como um ex-aluno de uma universidade que não teve sua vida adulta bem sucedida e tenta retornar à vida de estudante – isso é comum com um aluno que outro, mas imaginai quase uma turma inteira? E se resolvessem todos voltar ao que eram, viver a vida que tinham? Poderiam usar as mesmas roupas, frequentar os mesmo lugares, até voltar à universidade. Seguramente não seriam como a turma original, mas não seria difícil identifica-los – o fantasma é sempre um eco malfeito de seu original. É um remendo das partículas verdadeiras, mas não o seu encaixe perfeito. As partículas se reúnem: talvez não as partículas que lhe davam cheiro, não as partículas que lhe davam som, mas as partículas que lhe davam imagem (assim sendo, haveria também vozes do além, ou fantasmas em forma de cheiro, mas que indubitavelmente não chamam tanta atenção quanto as manifestações visuais – já vi parentes meus revelarem sentirem cheiro de pessoas queridas finadas em determinadas situações). E ainda assim é praticamente impossível que a imagem se projete integralmente, então a pessoa aparecerá sem um braço, ou o tronco meio esfumaçado, ou apenas com um esboço da cabeça: como uma foto exposta tempo demais ou de menos à luz.
O resto é o exagero dos relatos que a ficção absorve e sistematiza, da mesma forma que a língua mal pintada de um lagarto tornou-se um labareda de fogo, fazendo do lagarto um dragão (inspirado por lendas chinesas) e, a partir daí, os exagerados e os filmes americanos fizeram o resto para transformá-lo num brontossauro rococó lança-chamas (não à toa as sereias, de horrendas águias com cabeças humanas, tornaram-se a pequena Ariel).
Tais momentos se revelam como epifanias avessas, duram por um breve momento, geralmente na casa dos minutos. Embora a sensação possa perdurar, como a lembrança de uma dor física que não se sente mais, por mais tempo.
Num dia desses, num dia assim como esses descritos, eu estava deitado na cama sob uma meia luz de um dia nublado já quase anoitecido (uma madrugada funcional), eis que as lâmpadas do quarto deram para piscar sozinhas, com o interruptor indubitavelmente desligado. Uma pesquisa breve na internet salvou-me do desespero maior (há explicações técnicas para o ocorrido).
Quanto não se está em depressão parece ser tão fácil não estar em depressão e quando se está em depressão parece impossível não se estar em depressão. O mesmo serve para apaixonado. Ou frio – talvez aqui tenhamos a mais eficaz metáfora: nossa lealdade à temperatura: ninguém fica de casaco se a temperatura beira os 40 graus porque fez um pacto com o casaco ou acredita no frio.
Passado o momento, retorna-se à estabilidade da posição de normalidade e a retrospectiva do fato não se torna novamente o fato, virando apenas uma lembrança, não raro humorística.
Graças à nossa fé no normal, no cotidiano, no óbvio; à fé que nos levará de volta para a absoluta maioria dos dias da nossa vida em que coisas mágicas não acontecem. Num momento de terror como esses, é preciso crer, com toda a fé que se adiciona à palavra “acreditar” no seu sinônimo “crer”. Crer, com toda fé, no crível.
Entrar na cozinha e torcer muito para que as cadeiras estejam no chão e não no teto; acreditar que ao abrir os olhos não haverá qualquer coisa que já não estava lá quando se os fechou; e que no passo acelerado entre o interruptor recém-desligado e o quarto a luz barroca da sala iluminada de longe por outro cômodo não reflita nada no espelho a não ser o que se espera ordinariamente refletido – que só os meus olhos me olhem.
[NOTA]: embora tenha escrito o esboço embrionário desse texto há mais de um mês, deixei para publicá-lo agora após o Carnaval - e ele já estava pronto antes do feriado.
Pois que anteontem, 04/03/2014 – a nota trata-se de uma coincidência –, tive meu primeiro (e espero único, o último) ataque de pânico, no shopping Pátio do Batel, em Curitiba. Pouparei a nós todos dos detalhes, mas já posso dizer que, de tão por ora superada, já me rio e faço piadas da situação.
Mas o fato aconteceu e posso dizer que é uma das piores sensações para se sentir, inda mais por não estar associada a um alívio respectivo, como a maioria dos sofrimentos (um veneno sem antídoto).
Num shopping com casacos de R$ 11 mil e diamantes de 30 (mil, claro, né, meu amor) a única coisa que eu queria naquele momento era paz; e não me refiro à paz mundial ou à anulação de qualquer stress, refiro-me à paz como normalidade, como estabilidade, como a capacidade de respirar, andar, olhar, pensar etc. Enfim, a capacidade.
As forças negativas realçam as positivas, como num chiaroscuro barroco: prometi ali o meu melhor assim que escapasse e ficasse são; graças ao meu bom Deus, ou ao meu bom anjo, ou ao São Jorge, temos João são. Agora é comigo, aproveitar a sanidade - e a versão positiva da força do pensamento e do estrago brilhante que ela pode causar.