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sexta-feira, 16 de maio de 2014

sob/re criar






"(...) entre a parte que domina/ e a parte que se rebela,/ entre o que nela cavalga/ e o que é cavalgado nela, (...)" [João Cabral de Melo Neto, ensaio para uma bailadora andaluza, § 2]

"A criação é divinda; a execução, servil." [Atribuída por aí a Leonardo da Vinci.]


Há imagens que se criam como vômitos; outras, como projetos. Outras tantas, talvez a maioria, como uma lógica mistura de ambos (poucas coisas não são misturadas no nosso mundo – fundamentalmente, aliás, nosso mundo vem da mistura). A diferença entre a puramente vomitada e a projetada (ou parcialmente projetada) é que a projetada não pode ter o formato espontâneo do vômito, ela necessita da resolução de uma série de problemas, geralmente demandantes de um excedente temporal (tempestivo sob a escala de todo o processo) relativamente ao ato inspiratório – o qual, no caso do vômito, é imediatamente expressado, posto para fora.

A inspiração e/ou idéia para um soneto pode surgir impetuosamente, mas será preciso engendrá-la no formato de quatorze versos regulares; é sim uma vontade, uma missão, uma visão, o compartilhamento epifânico, mas é preciso encaixá-lo na rima e na métrica nos seus respectivos (e cabem-se do mesmo modo misterioso, encoberto - para que seja descoberto) tercetos e quartetos. É a diferença entre um soco na cara de quem lhe importuna versus a missão de construir uma arca – há algo de descobrir na montagem do soneto (que segue sendo aqui um exemplo), como dizem dizia Michelângelo extrair do mármore o que já estava lá, como um cão farejador que cavava com uma técnica primordial.
O soneto como um vômito organizado - ou como alguma outra excreção regular carente de processos fomentadores.

(É tudo muito parecido: esculpir, arquitetar, dar forma matematicamente precisa a um embalo mental etc., ou mesmo a construção experimental - trata-se de uma paradoxal síntese de extração e acúmulo, uma extração do acúmulo, um acúmulo de extrações; síntese de inspiração e trabalho, de liberdade e disciplina.)

Já há uma taxa de organização no sentimento vomitado que é escrito (ou pintado, ou musicado etc., enfim, manifestado, ficarei no “escrito” para fins de exemplo), já que ele não era um escrito originalmente, mas a reação imediata para congelar a pulsão mental traduzindo-a (mesmo que de origem emocional, processa-se no cérebro, ou onde quer que esteja espalhada a mente) - a não ser quando se vomite epistemologicamente, fruto isso da nossa evolução linguística, de pensar textualmente, quando o enjôo precedente ao vômito (pleonasmo dizer dele compulsório) não tenha sido uma sensação abstrata a ser traduzida, mas a própria forma pronta, pensada já na própria plataforma, especificamente. Para não sair do exemplo escrito, uma metáfora da versão inspiração-planejamento repousaria suavemente num retrato falado da vaga lembrança do que repletou a mente na sua própria linguagem multidimensional (sem margens, sem limites cartesianos).

(Essas forjadas diferenciações só existem na esfera material, já que na mente os processos geradores são inclassificáveis, o vômito, qual a ejaculação, pode ser apenas a catarse de intricadas sucessões que se complexaram indeterminadamente.)

Falo-o porque trabalho concomitante e diuturnamente (em pensamento, e quase idem em trabalho efetivo, de execução) num soneto de hendecassílabos e no trabalho da imagem abaixo, construída no que por ora se vê, construindo-se já há algumas semanas (talvez duas passando para três) e que continuará a ser construída até o seu momento de abandono borgeano, e seguirá inda viva numa versão pictórica – oficialmente o visto a seguir é um dos meus preparatori (seus cento e tantos por outros cento e tantos centímetros tornar-se-ão uns 144 x 188 cm na tela de algodão) – e trata-se de um momento soneto, é definitivamente um soneto visual:
 
  
 
 
 
 

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