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terça-feira, 29 de julho de 2014

Dia Tigrino

Eles estão no zoológico, nalgumas jaulas domésticas, em circos, em braços, bundas, lombares e pescoços através de tecidos (tanto da Dolce &Gabbana quanto d’A Barateira ali do Centro) ou de tinta tatuada (às vezes com aquele defasado contorno verde marinheiro, às vezes subvertidos em formas fofas identificáveis apenas pelas listras – quase um Care Bear trabalhado na animal print), estão em camisetas (muitas minhas) e estão, ainda e infelizmente, num chão qualquer por aí, sem qualquer vida, jogados de qualquer maneira, ironicamente com os olhos abertos, para terem seus caninos (os maiores entre os felinos) moídos para virarem viagras placebianos.  
Mas o lugar do tigre é na natureza, onde, na neve, ele, dizem, come até ursos pardos e lobos (sim, faz do terrorista da narrativa infantil seu desjejum, suplementa proteína com o Lobo Mau); é da natureza, onde, na densa selva equatoriana, ele vive tão escondido e tão influente quanto uma partícula elementar, numa subespécie que tem menos da metade do tamanho da sua versão siberiana, mostrando que fez sua parte e adaptou-se a um continente inteiro, o maior deles, aliás.

Quem me conhece ou conhece meu trabalho criativo sabe que geralmente eu considero observar a maior parte de faces das questões antes de cristalizar algumas certezas, que ainda assim são certezas radicantes, funcionais. Mas quem me conhece também sabe a minha incondicional idolatria nutrida pelo tigre. Entre incontáveis exemplos dela, cito que uma vez cheguei a sonhar que me transfigurava num tigre, inclusive com a perda da consciência humana, com aquela sensação realista do impossível que só o nosso córtex livre na privacidade do R.E.M. consegue; já desenhei, desde antes mesmo de saber escrever, provavelmente milhares deles, fiz histórias (numa delas, uma hora inda publico, o admirador de um tigre é obrigado a matá-lo para salvar a família) etc. Na minha infância sempre ouvia em contos e afins infantis o leão como o Rei dos Animais (porque o Rei da Selva era o Tarzan), porém simpatizava mais com a figura do tigre, embora ela fosse geralmente representada injustamente menor e menos ética que a do leão. Porém o conhecimento clareia e retira as sombras que se passavam por formas (ou formas das sombras), tão comuns no grosseiro imaginário popular. Então o tigre revelou-se a alternativa de realeza sem a opulência do leão, porém com tantos ou mais propriedades do que ele. O leão representa a unanimidade fácil, como uma euforia popular; o tigre, a verdade sem ilusões, mas tão poderosa quanto a ilusão. Rebati realeza manifesta metonímica da juba do leão ao conceituar que o tigre é da cor que a luz do Sol imprime quando vem do céu à terra nas divisas entre o dia e a noite e carrega na própria pele pedaços de sombra: há na forma tigrina algo de síntese, de harmonia, de magnificência cordata, sem deslumbramento, como se o tigre representasse como as coisas são e o leão como as coisas parecem ser.

Claro que, além disso, como a maioria dos meninos, eu gostava mais de tiranossauros e grandes felinos do que de garças, antas e sacis. Felinos têm grande apelo popular, contêm o assassino, o fofo, o pet, o preguiçoso, o ágil, até se passam por pássaros (com quem não poderiam competir na causa de inveja humana, devido ao voo), ao subirem em telhados. Talvez o tigre seja o animal mais admirado do planeta – uma pesquisa revelou ele ser o animal preferido das crianças, acima do cão, do gato, do panda, do cavalo, do golfinho etc.
Hoje, como com tudo o que admiro, o tigre se encaixa numa harmonia geral: à medida que se olha algo, passa-se a observar mais a tinta do que as figuras que ela formou e se vê que tudo faz parte de um todo. Assim, a despeito de preferências conceituais e afetivas, não há como não admirar em igual medida o atum, a hiena, o tarso, o vira-bosta (que, a despeito do nome popular, é um pássaro de penas azuladas e brilhantes lindíssimo).

Se Rafael hoje em dia popularmente vive à sombra de Michelangelo e Leonardo, exceto no Teenage Mutant Ninja Turtles, ele já foi referência máxima do Renascimento Ocidental. Há constante debate, ou seja, há constante conflito, transformação, troca de reis. Mas a arte é uma invenção imortal. Inda que a consideração diminua, a obra de Rafael (ou a composição de um músico anônimo brasileiro qualquer do século XVIII) inda existe em estado potencial, em repouso, talvez esquecimento, mas apta a ser acionada. Quando falamos da dança das cadeiras do mundo biológico, mesmo que as configurações orgânicas possam simplesmente alternar-se de uma espécie a outra durante as eras (um girassol ser feito de fezes e ossos jurássicos que se vão reengendrando infinitamente), falamos de espécies que nunca mais serão vistas.

O mundo se movimenta. E em todos os seus níveis. E em todos eles a transformação, portanto, é constante (as partículas elementares, as galáxias, o maciço chão sob nós, tudo está sempre se movimentando – e mudando). Ao que nos resta constatar, não sem melancolia, mas com muito mais lirismo, diria, os que já não estão aqui, e isso inclui avós, pterodátilos, crianças que não existem mais nas suas atualizadas versões adultas. Resta constatar, não sem fascínio, mas com muito mais elucidação, os encaixes de uma espontaneidade que de tão fluída parece não se autenticar, parece anterior a si mesma, planejada. E de qualquer ponto de vista, em tudo em que inclua a melancolia, o lirismo, o fascínio e a elucidação há séculos – e mais ainda no penúltimo e muito mais ainda neste último que inicia o milênio – vemos uma transformação da selvageria, que sai da natureza a qual mantinha para atos cotidianos que a molestam. Ela não cede (sempre que querem, oceanos, ventos, vulcões etc. mostram quem ainda manda na Terra), mas quanto ao seu legado nada pode ser feito. E, destruída ele, destroem-se seus espetáculos diários não televisionáveis, seus extremos inexploráveis, seus mistérios, potenciais soluções, mensagens – e ele por si só.  

Representante da excelência do mundo orgânico (e qual animal não é?), dotado de habilidades inatas e inteligência suficiente apenas para fazer sua parte, o tigre vive no espaço que lhe restou do leste asiático, justamente a zona mais habitada do planeta pela espécie que saturou sua inteligência numa gama do livre-arbítrio que abarca tanto o anjo protetor como o sádico assassino.

Usa-se a palavra “magnicídio” quando um nobre (na acepção oficial, burocrática), chefe de estado ou celebridade é assassinada. Dela extraio um neologismo: magnificídio – o assassinato (e não a morte natural) do magnífico simbolizado na extinção do tigre. Tentar salvá-lo não é somente uma tentativa específica, é dar um passo afirmativo e esperançoso na direção dos mundos possíveis nos quais a inteligência se responsabilize em vez de se aproveitar abusivamente. Além disso, pensando estrategicamente, salvá-lo atende tanto à caridade do nosso sentimento por um cão abandonado quanto à admiração pelo poder, isso tudo acordando com a agenda mundial de sustentabilidade.

Evidentemente doar é a solução mais simplória, mas é também um ato simples (dificilmente se repete a reflexão financeira dispensada ao ato de doar com o ato de comer (mas antes comprar) um sushi, ou uma à la minuta, ou com uma porção de cervejas que não raro termina quente, abandonada, sem cumprir o seu destino): o ato simples de ajudar a dar ferramenta a quem se dedica à questão – e eu acredito na sinceridade dos que fazem este trabalho, pois eu tenho vontade de fazê-lo e, embora tudo que envolva o dinheiro, esse tentador poder líquido, mereça nossa atenção, a sinceridade crida a que me refiro vem refletida de uma sensação pura que me sublima (capacidade reservada apenas a algumas criações humanas, ao sentimento de justiça, aos laços afetivos designados por sangue ou pelo destino – é como ouvir uma sinfonia, como ver o sorriso de um bebê: o compartilhamento de uma abstrata e absoluta noção de que, naquele ponto do espaço-tempo-sensação, aquilo é o que podemos chamar vida e o resto é supérfluo, como se exposto a uma dose constante e moderada vinda de um núcleo da verdade, emissor de todas as epifanias).  

Que seja a doação já alguma coisa. Como é alguma coisa alguma consciência espalhada pelo mundo (textos, fotos, compartilhamentos são capazes de induzir o caminho da transformação que compulsoriamente promovem) talvez ela extinga, em vez dos tigres, suas mortes banais. E que outras coisas sobrevivam sob seu guarda-chuva alvi-âmbar-negro, com seu sangue vermelho, olhos verdes e amarelos sobre um terreno verde, sob o céu azul protetor dos nossos minerais marrons.

Link da campanha #DOUBLETIGERS da WWF (obrigado, Renata Grando)



segunda-feira, 14 de julho de 2014

Luísa is luz


Apresento-lhes oficialmente a minha sobrinha, Luísa. Ela é filha de minha irmã de sangue com meu irmão de coração; este, inda que seja um polaco que em nada se parece comigo, é também da minha família, já há ¼ de século; aquela, embora obrigatoriamente tenha se criada comigo, por obrigação nenhuma sempre foi minha amiga, de troca de confidências, de viagens, de brincadeiras, um farol, alguém que sempre me ensinou a questionar, a ver diferente. E eis que, voltando ao assunto, eles juntos tiveram a Lúli. 
Eu até já a homenageei escrevendo-lhe um poeminha, meio bobo para os meus padrões e anseios estéticos, mas incalculavelmente volumoso e absoluto em convicção, comparado às convicções tão diluídas que surgem de outros empreendimentos criativos, onde o que me encanta é a dúvida e as forjas de certeza – e os bebês são um pouco assim, uns seres humanos um tanto simples, mas que emanam tanto futuro próprio, tanto passado herdado e nos dão a dimensão do presente exata, quando nada mais à volta, à frente ou atrás importa. 

Venho então lhas apresentar oficialmente, já que ela agora é também oficialmente minha afilhada (e que a minha amada e irrepreensivelmente linda de fofura e iluminada de alma Manuela não se enciúme, que ela tem seu lugar comigo). Minha afilhada e de minha esposa e de minha outra irmã (minha outra melhor amiga, aliás). 

Luísa is luz e veio à luz no dia 18 do 5, 9 para as 9. Desde então ela me vem encantando, e não por nepotismo, mas por me jogar na cara este ordinariamente miraculoso caminho da vida humana: o bebê nasce e continua nascendo a cada dia: numa semana nasce sua visão, numa outra, sua noção, depois outra noção de algo que ainda não tinha noção; e quando vê, ela vê, ela olha, olho no olho, para ti (para mim!), donde que eu penso – “o que pensa ela? Como é esse pensamento livre das poluidoras palavras e antes delas conceitos? O que ela aprendeu de novo hoje? Que existe uma coisa amarela e outra vermelha? O quê?”. Dia desses, eu me esfolei estalando os dedos e funcionou: ela me olhou fixo, impressionada com o som e movimento: consegui chamar sua atenção! Ela, sei lá, tentando entender o que era aquele monte de cabelo e nariz, se era planta, animal, um planeta - mas nada disso importa por ora, é hora da novidade, e ela olhou para aquilo tudo e parou de chorar – e me fez só rir, sorrir. Pela vida que ela me mostra; e também por ela, só ela, sem conceitos e palavra, tentando equipar-me à sua instintiva pureza, sorver sua incontornável beleza, a raríssima beleza sem contraindicações.




[Publicado originalmente no http://facebook.com/joaogrando

Meteoro de Gaza

Mesmo a ciência, que – numa definição simplória – teoricamente se fundamenta em observações comprovantes, gera conflitos de opiniões e consequentes correntes, o que dizer dos assuntos de humanidade? O mais sensato seria assumir a relatividade inerente a eles e estabelecer um campo comum e dessa sobreposição sintetizar o que há de bom e eliminar o que há de ruim (mas o que é bom e o que é ruim?); mas talvez isso seja desumano, e humano seja o desafio de tomar partido em meio a tantos fatores, consagrar a escolha, o livre arbítrio, que é algo que nos distingue das demais espécies.

Mas é um processo complexo, no há que se levantar constatações. Ou simplificá-lo na confiança que se pode dar ao que chamamos coração, embora ele possa se (e então nos) enganar. E não sei se o meu se enganou, mas quando penso no Oriente Médio, penso sempre no sofrimento que deve ser viver na Faixa de Gaza – claro que pensar em ambos os lados me traz de volta à tona o que haveria de responsabilidade nisso, no que Israel não poderia deixar de fazer e no que se romantiza dos que são vítimas em proporcional demonização dos que têm poder.

O fato incontestável é que se há paraísos na Terra para os quais podemos ascender por alguns dias mediante o pagamento de algumas prestações e comprovar com fotos e souvenires, há também alguns infernos diluídos no nosso vasto território e a Faixa de Gaza é um deles; ao contrário dos paraísos, não precede escolha.

Tudo isso resultou na produção do vídeo abaixo em 2011, que, a seu modo, segue atual: a melancólica constatação do impossível (talvez seja sempre melancólico tal movimento) e a celebração de sua possibilidade apenas estética, para que a ilusão guie nosso coração e talvez nossa escolha, nossa escolha humana.



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