"Nessuna cosa si può amare nè odiare, se prima non si há cognition de quella"
Leonardo da Vinci
Leonardo da Vinci
O |
que me dá nos nervos na arte e ao mesmo tempo me encanta é o modo como ela se disfarça de outras coisas dando uma atmosfera poética a estas coisas – a atmosfera poética é um estado de atenção amplificada, que torna os detalhes poéticos – a palavra poética em si já substitui todas as outras: a atmosfera melancólica é um estado depressivo que faz qualquer detalhe parecer triste e assim vai indo, e a possibilidade deste sistema lingüístico (ou mais que isso, sensorial) de percepção é que determina a poesia.
Há trabalhos de intervenção urbana performática que discorrem sobre passar perigo em ambientes urbanos: mas se passa muito menos perigo que qualquer praticamente médio de le parkon. O que em princípio diminuiria qualquer mérito do aventureiro artístico. Mas é na maneira como olha e como faz olhar (convidando) que mora a arte. Fazer conscientemente, falar da feitura fazendo, vivenciando, experimentando. É o que se recorta dali. Por isso alguns riscos em galerias valem tanto mais que outros muito mais numerosos e de “qualidade técnica” (aspas para relativizar) superior num esboço do Alex Ross. O erro está em quem se perde nesta avaliação (e até formandos em artes fazem isso) e analisa o material em si, quando em verdade ele é peça em favor de uma idéia.Peça porque se trata de uma equação, que como equações avançadas contam com referenciais. Às vezes são equações para provarem conjeturas. E às vezes a arte é a conjetura em si, os estros adivinhando possibilidades que a física quântica talvez burocratize.Mas as criações subjetivas que fiquem para as apreciações subjetivas, que aí se conversam na mesma língua, poderíamos dizer. Eu fiz uma interpretação de Paranoid Park e da relação deste filme com sua música, depois descobri que muitas combinações foram feitas ao acaso por Van Sant – mas a essência faz sentido, a obra se fecha, no sentido de estar redondo, de ser coesa dentro de si mesma (e também daquele papo que a obra pode fugir ao domínio do obreiro). O artista não pode escolher donde a bola virá, mas quando ela vir ele tem de saber aonde mandar. O action paiting de Pollock, para alguns yankees o ápice do modernismo e do grande diálogo da pintura, a ponto de pô-lo em termo, pode ter nascido ao acaso (isento-me aqui por não saber ao certo).Eu teria de ter em verdade o mérito do silêncio e não me pronunciar assim sobre este assunto. Mas escrevi escrevendo, e se tu lês agora é porque está publicado, para não perder mais tempo com isso – embora seja evidente que eu vá perder. Eu vejo pessoas com senso estético nato apurado, pessoas inteligentes, que escrevem bem e tudo o mais perdendo tempo com isso. Não há mais porque questionar a arte contemporânea. É uma discussão estéril. E Isso ocorre até com estudantes de arte que lêem livros sobre o assunto, que têm a oportunidade de estudar teoria e crítica de arte (leitura estimulante, aliás). Que dirá no meio virtual, que qualquer um escreve o que quer sem ter conhecimento prévio. E já que estamos num meio assim, eu me aproveito dele, dando um prato cheio para os que queiram criticar-me dizendo que apenas desfilo algumas obviedades e referências. Pois bem, lá vamos.A informação substituir a coisa em si, ou a todas as coisas, a referência substituir o referencial, para ser mais técnico, é uma característica do sistema pós-moderno, porque isso deixa tudo mais rápido, ou se faz necessário por ser a única possibilidade. E a internet atende a esta demanda ao dar espaço a todos, ao permitir que cada um crie a referência para si mesmo, ao iniciar um processo de relação de poder tal qual Foucault elucidou, de todos para com todos e não de cima para baixo. Mas neste jogo democrático, há uma possibilidade ruim ou, mais que isso, assustadora: a de as opiniões e pitacos (a referência) substituírem todo um conhecimento já erigido e registrado em livros (o referencial). Eu mesmo faço isso neste exato momento, chovo no molhado. Chovo no molhado porque qualquer livro decente sobre pós-modernismo responde a tantas questões filosóficas às quais estamos submersos. E qualquer livro decente de história da arte (ou mesmo indecente) torna a pergunta, a polêmica e tudo o mais que envolve arte contemporânea (ou Duchamp, desde a década de 20!) questões tão resolvidas que figurariam tranquilamente em enciclopédias (como de certa forma já figuram). As polêmicas autênticas podem ser igualmente estendidas para o passado também, percorrendo todas as páginas da enciclopédia.Não há porque reinventar a roda (a menos que seja uma reinvenção consciente, como a de Duchamp, ou como o plágio assumido na poesia, uma reinvenção que é no movimento/ ação e não no resultado (a hiper-Marylin Monroe de Warhol mitificada e ao mesmo tempo descartável, repetível – a sopa de tomate tal e qual)). Há que se usar a roda. A reinvenção pejorativa é a colaboração que não precisamos ler por aí. Questões quarentonas sendo levantadas, quando poderíamos discutir coisas deste sistema aceitando-o (porque é inevitável sua presença e importância) – e aí que está o mérito do silêncio: há quem as discuta, mesmo no meio virtual, então não se deve retroceder.
O lado vilão que existe é o caráter de dominação que as coisas tomam quando entram no poder, ou o exagero do outro lado para se manter – o PT antes e depois de ocupar a presidência. A não aceitação da arte funcional e aplicada em escolas de belas artes (o que não é tão condenável, afinal há o design gráfico e outros cursos) é que gera os tais engodos que irrita a tantos. BBB é legal. Não há mal nenhum em cantar Chitãozinho e Chororó em voz alta. O preconceito em relação à arte funcional, à comunicação em massa, ao entretenimento, ao popular é tão preconceito quanto qualquer outro, é tão fechado quanta a porta que fechavam para os impressionistas, que hoje estão por aí a enfeitar calendários em consultórios médicos. Mas cada um deve lutar pelo seu espaço sem degradar o que não conhece. Os que acreditam na arte como uma expressão pura e subjetiva de um talento (e eu creio nela como sendo assim também) têm espaço para exercer sua expressão – e creio que a Transvanguardia Italiana e consequentemente os escritos de Achille Bonito Oliva têm alguns elementos para embasar isso, tal qual o prazer da criação, o artista livre etc (embora eu inda me encante mais do movimento devido à difícil ironia visual que eles buscaram) – o espaço é de todos, prova disso é a exposição de street art que ocupa todo o Santander Cultural, um dos principais sítios de Bienal do Mercosul.
O que também irrita (e faz o papel de vilão da arte, generalizando a todos os envolvidos e os rebaixando a uns pseudo-intelectuais que de fato existem) são os recém-chegados (que podem permanecer assim por anos) que vêem simplesmente no método já algum mérito – uma instalação boba é tão boba quanto um óleo bobo; um vídeo granulado e com narração oblíqua e música sobreposta em camadas pode ser tão óbvio quanto uma novela água-com-açúcar; um artista conceituado pode ter projetos não tão bem sucedidos; uma Palma de Ouro em Cannes pode ser um engodo. Há gente que abana o rabo só de ouvir que um filme é todo em plano-seqüência, coisa que não é novidade desde a Arca Russa, ou mais ainda desde Festim Diabólico. É deles muito provavelmente que vem a maioria dos narizes torcidos. Como disse Hannah Arendt, “o revolucionário mais radical se torna um conservador no dia seguinte à revolução”, e a tendência do conservadorismo é opressora. Eles, bem como os que apedrejam qualquer coisa que não fique boa numa parede sem saber onde pisam, devem ser desprezados, a menos que se institua um movimento pró-arte contemporânea (lutando contra os dois casos), semelhante aos que enfrentam o racismo, o machismo, a homofobia e os abusos e preconceitos de toda sorte (preconceitos antigos, mas ainda perenes – o mesmo caso).
Até porque às vezes as vanguardas se disfarçam de mau-gosto e eu sempre penso que o pós-modernismo dá enfim voz ao povo, aceita definitivamente o humano – pois é uma desistência do horror e da empolgação ante um novo mundo do início do último século do milênio passado (cataloga os preguiçosos, os hedonistas, o pessoalzinho que quer curtir a vida e diz que todos podem ser assim).
E, claro, se “a arte revela o humano”, ela vem cumprindo sua missão. Se antes isso era retratá-lo (até a fotografia, num pensamento objetivo que beira o simplório), passou a ser revelar sua ânsia coletiva, e após sua ânsia individual, ou alegria, ou raiva, ou ideologia, enfim, revelar-se. As obras que iniciaram o pós-modernismo ilustram de maneira elementar as definições dele. E, como tudo, um pouco numa via de mão dupla, definiu e definiu-se. E sofisticam-se para expressarem as coisas cada vez mais como são, como surgem. Assim reporto-me a mais um índice de transformação do século XX: Wittingenstein e a crença de que os limites da linguagem são os limites do mundo, do pensamento. A linguagem (todas as artes) que dê um jeito para acompanhar nossas cabeças, independentemente se aplicarmos as artes ao cotidiano, o cotidiano às artes, ou às artes a arte. Em meio aos meios mais especializados isso meio que acontece (como essa minha tríplice utilização para meio – vide vós que a ingenuidade intencional é um recurso, é como meditar) sem querer querendo, muitas vezes.
A atmosfera poética, como falei alguns parágrafos antes (citando apenas algumas possibilidades) é um estado de amplificação: da coisa em relação ao observador, ou do observador em relação à coisa, como supor saber uma verdade do universo. Amplificar é (também) o que a arte faz com a própria arte, como qualquer ciência ou ramo do saber. Picasso amplificou as distorções da tauromaquia de Goya. Para Matisse, o desenho é um registro do gesto, e muitas ações de hoje (ou dos anos 60) são lupas nesse raciocínio – a matéria é um registro do gesto, do que aconteceu. Ou seja, continua-se do que foi feito anteriormente. Considera-se a história (até quando o objetivo é condená-la). É como um time de futebol, como uma pesquisa científica, como a fabricação de um produto, um passando a peteca para o outro blá, blá, blá. Ramifica-se do que já fora antes, como uma árvore que vai da raiz à flor, para não deixar de apelar para mais uma metáfora simples.
Quanto aos arrebatamentos, Gabriel Orozco diz que a arte não pode mais aspirar ser emocionante, pois a Benetton sempre será mais. Aí entendamos emocionante mais para música ao fundo e cabelos ao vento, mais para uma propaganda natalina do Zaffari. Uma emoção gritada, cantada. E o que dizer quando ao amassar uma argila, o próprio Gabriel diz que suas mãos são seu coração? Num movimento simples, sem nenhuma técnica tradicional, uma expressão belíssima. Então é também de sensibilidade, de emoção que falamos. Os trabalhos de Jorge Macchi que trazem as desapercebidas músicas de fundo e os créditos finais do filme para o centro de uma exposição são de chorar baixinho, dentro da cabeça. Faz The Long and Winding Road parecer exagerada (nem é preciso me convencer de Beatles, eu já tenho uma lista de suas 100 melhores músicas quase pronta para publicação).
Ou as garrafas de Coca-Cola de Cildo Meireles: se apenas vermos a fotografia num livro (“arte visual”) elas parecerão ser o mesmo jogo de Warhol. Porém, se nos informarmos a seu respeito, veremos que na contramão da superficialização pós-moderna significada por Andy, Cildo deu um conteúdo à garrafa (encheu-a) e com sua ação criou uma maneira de significar a resistência à opressão. Além da idéia por si só já se valer, ele ainda usa de um mesmo elemento para metaforizar a comparação entre a angústia da sociedade latino-americana e brasileira com a norte-americana. É da consistência que Ítalo Calvino proclamaria, mas não pôde proclamar como queria, para o próximo (este) milênio (plagiei-me daqui). Digo porque talvez não seja só isso (o próprio Cildo critica o excesso de verbalização como característica da arte contemporânea), mas a idéia é redonda.
É preciso então atingir a arte, ou deixar-se atingir por ela, tanto faz o esquema. Quem assistir Vertigo (ou o spoilerano título Um Corpo que Cai ou pior ainda A Mulher que Viveu Duas Vezes) sem lançar o olhar para além da história contada, pode não perceber a reflexão sobre o poder da imagem e a relação desta com o que representa (algo que se vê em A Vila, por exemplo, preguiçosamente acusado de um suspense mal-sucedido) que há ali. Ou os modelos de Robert Bresson, para o qual os atores são apenas referencias para a criação de relações e metáforas: ao ver seus filmes alguns cidadãos saem da sessão a dizer que os atores não se mexem, não têm expressão, são paradões ( certamente eles devem estar no time que diz que “o coringa rouba o filme”).
O prazer da arte é também o prazer da integibilidade, para além de sua força visual. Como na obra Uma Vista, de Cássio Vasconcellos: seria apenas mais um aglomerado de fotos finamente expostas, não fosse a submersão do indivíduo na cidade e a fragmentação dela propostas pela montagem.
É o prazer da elucidação, de perceber o corpo da obra, de conversar com ela, ouvi-la, mesmo quando o que se ouça seja um grito, uma arroto, um espirro.
É chover no molhado, mas saber como se está chovendo. Pois chovendo no molhado criamos uma grande poça, que se acumulou em rio, que vem desde os gregos e antes deles nos homens das cavernas inundando a cidade, e ao mesmo tempo que dá água, desabriga, traz à tona o lixo – mas sempre transforma.
A arte deixou de ser plástica para ser visual, e hoje (há tempos) deixa de ser visual para ser também sensorial, auditiva, presencial, ativa, intelectual, interativa etc não só no seu significado mas também em seu formato.
E se pensarmos no que dizia Picasso, que toda arte é atemporal, pois ela sempre tem de ser de seu tempo, arte contemporânea é um pleonasmo.
Arte é arte, deu.
E, voltando a citar Leonardo, "quanto mais conhecemos, mais amamos".
Então a arte não dá nos nervos, ela encanta.
Ou encanta justamente por atingir os nossos nervos.

Há trabalhos de intervenção urbana performática que discorrem sobre passar perigo em ambientes urbanos: mas se passa muito menos perigo que qualquer praticamente médio de le parkon. O que em princípio diminuiria qualquer mérito do aventureiro artístico. Mas é na maneira como olha e como faz olhar (convidando) que mora a arte. Fazer conscientemente, falar da feitura fazendo, vivenciando, experimentando. É o que se recorta dali. Por isso alguns riscos em galerias valem tanto mais que outros muito mais numerosos e de “qualidade técnica” (aspas para relativizar) superior num esboço do Alex Ross. O erro está em quem se perde nesta avaliação (e até formandos em artes fazem isso) e analisa o material em si, quando em verdade ele é peça em favor de uma idéia.Peça porque se trata de uma equação, que como equações avançadas contam com referenciais. Às vezes são equações para provarem conjeturas. E às vezes a arte é a conjetura em si, os estros adivinhando possibilidades que a física quântica talvez burocratize.Mas as criações subjetivas que fiquem para as apreciações subjetivas, que aí se conversam na mesma língua, poderíamos dizer. Eu fiz uma interpretação de Paranoid Park e da relação deste filme com sua música, depois descobri que muitas combinações foram feitas ao acaso por Van Sant – mas a essência faz sentido, a obra se fecha, no sentido de estar redondo, de ser coesa dentro de si mesma (e também daquele papo que a obra pode fugir ao domínio do obreiro). O artista não pode escolher donde a bola virá, mas quando ela vir ele tem de saber aonde mandar. O action paiting de Pollock, para alguns yankees o ápice do modernismo e do grande diálogo da pintura, a ponto de pô-lo em termo, pode ter nascido ao acaso (isento-me aqui por não saber ao certo).Eu teria de ter em verdade o mérito do silêncio e não me pronunciar assim sobre este assunto. Mas escrevi escrevendo, e se tu lês agora é porque está publicado, para não perder mais tempo com isso – embora seja evidente que eu vá perder. Eu vejo pessoas com senso estético nato apurado, pessoas inteligentes, que escrevem bem e tudo o mais perdendo tempo com isso. Não há mais porque questionar a arte contemporânea. É uma discussão estéril. E Isso ocorre até com estudantes de arte que lêem livros sobre o assunto, que têm a oportunidade de estudar teoria e crítica de arte (leitura estimulante, aliás). Que dirá no meio virtual, que qualquer um escreve o que quer sem ter conhecimento prévio. E já que estamos num meio assim, eu me aproveito dele, dando um prato cheio para os que queiram criticar-me dizendo que apenas desfilo algumas obviedades e referências. Pois bem, lá vamos.A informação substituir a coisa em si, ou a todas as coisas, a referência substituir o referencial, para ser mais técnico, é uma característica do sistema pós-moderno, porque isso deixa tudo mais rápido, ou se faz necessário por ser a única possibilidade. E a internet atende a esta demanda ao dar espaço a todos, ao permitir que cada um crie a referência para si mesmo, ao iniciar um processo de relação de poder tal qual Foucault elucidou, de todos para com todos e não de cima para baixo. Mas neste jogo democrático, há uma possibilidade ruim ou, mais que isso, assustadora: a de as opiniões e pitacos (a referência) substituírem todo um conhecimento já erigido e registrado em livros (o referencial). Eu mesmo faço isso neste exato momento, chovo no molhado. Chovo no molhado porque qualquer livro decente sobre pós-modernismo responde a tantas questões filosóficas às quais estamos submersos. E qualquer livro decente de história da arte (ou mesmo indecente) torna a pergunta, a polêmica e tudo o mais que envolve arte contemporânea (ou Duchamp, desde a década de 20!) questões tão resolvidas que figurariam tranquilamente em enciclopédias (como de certa forma já figuram). As polêmicas autênticas podem ser igualmente estendidas para o passado também, percorrendo todas as páginas da enciclopédia.Não há porque reinventar a roda (a menos que seja uma reinvenção consciente, como a de Duchamp, ou como o plágio assumido na poesia, uma reinvenção que é no movimento/ ação e não no resultado (a hiper-Marylin Monroe de Warhol mitificada e ao mesmo tempo descartável, repetível – a sopa de tomate tal e qual)). Há que se usar a roda. A reinvenção pejorativa é a colaboração que não precisamos ler por aí. Questões quarentonas sendo levantadas, quando poderíamos discutir coisas deste sistema aceitando-o (porque é inevitável sua presença e importância) – e aí que está o mérito do silêncio: há quem as discuta, mesmo no meio virtual, então não se deve retroceder.
O lado vilão que existe é o caráter de dominação que as coisas tomam quando entram no poder, ou o exagero do outro lado para se manter – o PT antes e depois de ocupar a presidência. A não aceitação da arte funcional e aplicada em escolas de belas artes (o que não é tão condenável, afinal há o design gráfico e outros cursos) é que gera os tais engodos que irrita a tantos. BBB é legal. Não há mal nenhum em cantar Chitãozinho e Chororó em voz alta. O preconceito em relação à arte funcional, à comunicação em massa, ao entretenimento, ao popular é tão preconceito quanto qualquer outro, é tão fechado quanta a porta que fechavam para os impressionistas, que hoje estão por aí a enfeitar calendários em consultórios médicos. Mas cada um deve lutar pelo seu espaço sem degradar o que não conhece. Os que acreditam na arte como uma expressão pura e subjetiva de um talento (e eu creio nela como sendo assim também) têm espaço para exercer sua expressão – e creio que a Transvanguardia Italiana e consequentemente os escritos de Achille Bonito Oliva têm alguns elementos para embasar isso, tal qual o prazer da criação, o artista livre etc (embora eu inda me encante mais do movimento devido à difícil ironia visual que eles buscaram) – o espaço é de todos, prova disso é a exposição de street art que ocupa todo o Santander Cultural, um dos principais sítios de Bienal do Mercosul.
O que também irrita (e faz o papel de vilão da arte, generalizando a todos os envolvidos e os rebaixando a uns pseudo-intelectuais que de fato existem) são os recém-chegados (que podem permanecer assim por anos) que vêem simplesmente no método já algum mérito – uma instalação boba é tão boba quanto um óleo bobo; um vídeo granulado e com narração oblíqua e música sobreposta em camadas pode ser tão óbvio quanto uma novela água-com-açúcar; um artista conceituado pode ter projetos não tão bem sucedidos; uma Palma de Ouro em Cannes pode ser um engodo. Há gente que abana o rabo só de ouvir que um filme é todo em plano-seqüência, coisa que não é novidade desde a Arca Russa, ou mais ainda desde Festim Diabólico. É deles muito provavelmente que vem a maioria dos narizes torcidos. Como disse Hannah Arendt, “o revolucionário mais radical se torna um conservador no dia seguinte à revolução”, e a tendência do conservadorismo é opressora. Eles, bem como os que apedrejam qualquer coisa que não fique boa numa parede sem saber onde pisam, devem ser desprezados, a menos que se institua um movimento pró-arte contemporânea (lutando contra os dois casos), semelhante aos que enfrentam o racismo, o machismo, a homofobia e os abusos e preconceitos de toda sorte (preconceitos antigos, mas ainda perenes – o mesmo caso).
Até porque às vezes as vanguardas se disfarçam de mau-gosto e eu sempre penso que o pós-modernismo dá enfim voz ao povo, aceita definitivamente o humano – pois é uma desistência do horror e da empolgação ante um novo mundo do início do último século do milênio passado (cataloga os preguiçosos, os hedonistas, o pessoalzinho que quer curtir a vida e diz que todos podem ser assim).
E, claro, se “a arte revela o humano”, ela vem cumprindo sua missão. Se antes isso era retratá-lo (até a fotografia, num pensamento objetivo que beira o simplório), passou a ser revelar sua ânsia coletiva, e após sua ânsia individual, ou alegria, ou raiva, ou ideologia, enfim, revelar-se. As obras que iniciaram o pós-modernismo ilustram de maneira elementar as definições dele. E, como tudo, um pouco numa via de mão dupla, definiu e definiu-se. E sofisticam-se para expressarem as coisas cada vez mais como são, como surgem. Assim reporto-me a mais um índice de transformação do século XX: Wittingenstein e a crença de que os limites da linguagem são os limites do mundo, do pensamento. A linguagem (todas as artes) que dê um jeito para acompanhar nossas cabeças, independentemente se aplicarmos as artes ao cotidiano, o cotidiano às artes, ou às artes a arte. Em meio aos meios mais especializados isso meio que acontece (como essa minha tríplice utilização para meio – vide vós que a ingenuidade intencional é um recurso, é como meditar) sem querer querendo, muitas vezes.
A atmosfera poética, como falei alguns parágrafos antes (citando apenas algumas possibilidades) é um estado de amplificação: da coisa em relação ao observador, ou do observador em relação à coisa, como supor saber uma verdade do universo. Amplificar é (também) o que a arte faz com a própria arte, como qualquer ciência ou ramo do saber. Picasso amplificou as distorções da tauromaquia de Goya. Para Matisse, o desenho é um registro do gesto, e muitas ações de hoje (ou dos anos 60) são lupas nesse raciocínio – a matéria é um registro do gesto, do que aconteceu. Ou seja, continua-se do que foi feito anteriormente. Considera-se a história (até quando o objetivo é condená-la). É como um time de futebol, como uma pesquisa científica, como a fabricação de um produto, um passando a peteca para o outro blá, blá, blá. Ramifica-se do que já fora antes, como uma árvore que vai da raiz à flor, para não deixar de apelar para mais uma metáfora simples.
Quanto aos arrebatamentos, Gabriel Orozco diz que a arte não pode mais aspirar ser emocionante, pois a Benetton sempre será mais. Aí entendamos emocionante mais para música ao fundo e cabelos ao vento, mais para uma propaganda natalina do Zaffari. Uma emoção gritada, cantada. E o que dizer quando ao amassar uma argila, o próprio Gabriel diz que suas mãos são seu coração? Num movimento simples, sem nenhuma técnica tradicional, uma expressão belíssima. Então é também de sensibilidade, de emoção que falamos. Os trabalhos de Jorge Macchi que trazem as desapercebidas músicas de fundo e os créditos finais do filme para o centro de uma exposição são de chorar baixinho, dentro da cabeça. Faz The Long and Winding Road parecer exagerada (nem é preciso me convencer de Beatles, eu já tenho uma lista de suas 100 melhores músicas quase pronta para publicação).
Ou as garrafas de Coca-Cola de Cildo Meireles: se apenas vermos a fotografia num livro (“arte visual”) elas parecerão ser o mesmo jogo de Warhol. Porém, se nos informarmos a seu respeito, veremos que na contramão da superficialização pós-moderna significada por Andy, Cildo deu um conteúdo à garrafa (encheu-a) e com sua ação criou uma maneira de significar a resistência à opressão. Além da idéia por si só já se valer, ele ainda usa de um mesmo elemento para metaforizar a comparação entre a angústia da sociedade latino-americana e brasileira com a norte-americana. É da consistência que Ítalo Calvino proclamaria, mas não pôde proclamar como queria, para o próximo (este) milênio (plagiei-me daqui). Digo porque talvez não seja só isso (o próprio Cildo critica o excesso de verbalização como característica da arte contemporânea), mas a idéia é redonda.
É preciso então atingir a arte, ou deixar-se atingir por ela, tanto faz o esquema. Quem assistir Vertigo (ou o spoilerano título Um Corpo que Cai ou pior ainda A Mulher que Viveu Duas Vezes) sem lançar o olhar para além da história contada, pode não perceber a reflexão sobre o poder da imagem e a relação desta com o que representa (algo que se vê em A Vila, por exemplo, preguiçosamente acusado de um suspense mal-sucedido) que há ali. Ou os modelos de Robert Bresson, para o qual os atores são apenas referencias para a criação de relações e metáforas: ao ver seus filmes alguns cidadãos saem da sessão a dizer que os atores não se mexem, não têm expressão, são paradões ( certamente eles devem estar no time que diz que “o coringa rouba o filme”).
O prazer da arte é também o prazer da integibilidade, para além de sua força visual. Como na obra Uma Vista, de Cássio Vasconcellos: seria apenas mais um aglomerado de fotos finamente expostas, não fosse a submersão do indivíduo na cidade e a fragmentação dela propostas pela montagem.
É o prazer da elucidação, de perceber o corpo da obra, de conversar com ela, ouvi-la, mesmo quando o que se ouça seja um grito, uma arroto, um espirro.
É chover no molhado, mas saber como se está chovendo. Pois chovendo no molhado criamos uma grande poça, que se acumulou em rio, que vem desde os gregos e antes deles nos homens das cavernas inundando a cidade, e ao mesmo tempo que dá água, desabriga, traz à tona o lixo – mas sempre transforma.
A arte deixou de ser plástica para ser visual, e hoje (há tempos) deixa de ser visual para ser também sensorial, auditiva, presencial, ativa, intelectual, interativa etc não só no seu significado mas também em seu formato.
E se pensarmos no que dizia Picasso, que toda arte é atemporal, pois ela sempre tem de ser de seu tempo, arte contemporânea é um pleonasmo.
Arte é arte, deu.
E, voltando a citar Leonardo, "quanto mais conhecemos, mais amamos".
Então a arte não dá nos nervos, ela encanta.
Ou encanta justamente por atingir os nossos nervos.
muito bom texto. devia ter me enviado antes, pra eu publicar no Amálgama :-p
ResponderExcluirabs.
Agora que percebi: ESTE É MEU 100º POST!
ResponderExcluirParabéns, centésimo.
Daniel, respondi-lhe por e-mail.
Muito bom seu texto também.
ResponderExcluirAlém de colocar de forma minuciosa sua opinião, nos deixou uma fonte generosa de novas referências e obras para consultar e conhecer.
Abraços.
Oi, João,
ResponderExcluirColoquei isso lá na seção de Notas da V&P.
Beijo.
Faz tempo que ando por aqui mas hoje quis comentar, talvez por ser o centésimo post, ou talvez porque me deu vontade de te contrariar: é possível voar.
ResponderExcluir:)
abraço!
Um dos melhores amigos - ou um dos amores - do ser humano é a ilusão. Com ela amamos, criamos, confiamos etc. E com ela, podemos, também, voar.
ResponderExcluirTalvez mais que o pássaro: mas jamais como ele.
[...] do que é auditivo, sensorial, encontrado em muitas bienais. Nesse ponto e em muitos concordo com João Grando, que também participou da discussão. O grande incômodo que me causou, e acredito que em muitas [...]
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