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terça-feira, 18 de novembro de 2014

Detalhes_GUERRA ET PAZ

Detalhes do acrílico e óleo sobre tela de 113 x 200 cm; chamava-se "Tantoentre", passou a se chamar "GUERRA ET PAZ" (que vem se tornando um tema recorrente). A uns 93%, prestes a ser borgeanamente abandonada. 




segunda-feira, 20 de outubro de 2014

Alzheimer temporário

Há uma fase do processo de memorização em que o dado se encontra em estado de gravação; temos Alzheimer relativamente à específica coisa encontrada em tal etapa. Aí há nisso aquele momento em que a fugidia memória recente (seja uma melodia, um rosto) surge claramente, como se nunca mais fosse desaparecer – e a lembrança em si vira um prazer, vira um reprodutor multimídia (incluindo aí mídias ainda não estabelecidas ou sequer inventadas) que toca um som, que lança um holograma da dimensão querida – estamos na nossa plena capacidade de lembrar (daquilo) – saudáveis (para aquilo), portanto – é possível inclusive animar o rosto ou ouvir outras versões da música. Um processo de associações começa a fim de que se mapeie, com recursos vários – associações, repetições etc. – , a lembrança; inda assim aos poucos a melodia passa a não mais fazer sentido (a letra, quando há, não cabe nela) ou o rosto começa a traçar outras características e proporções, às vezes confundindo-se com outros, às vezes virando um outro, uma atriz, uma outra pessoa conhecida, uma outra pessoa nada que ver – que talvez nem exista nos sete bilhões existentes ou quiça mesmo nos cem bilhões existidos. Constata-se que não se estava em lugar algum a não ser num pico cíclico da clareza que a lembrança maturando apenas alcança intermitentemente. Donde é preciso aguardar esperançosamente (e não sei o quanto esforço efetivamente colabora com isso) as sinapses se alinharem ou um novo acesso ao original, à luz primordial, à vibração presente (na passarela no mesmo horário, na hora do recreio, nas mais pedidas).

quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Acerto errático enterrado pelo erro: achemo-lo

Lápis (grafite) demora para acabar e quando acaba é barato comprar outro (ou mesmo achar algum em casa perdido, alguém emprestar); caneta acaba mais rápido, mas é barato também, dá até para - em último caso - arrancar a acorrentada à bancada envidraçada do banco para depósitos em envelope, pegar a dos seguros, dos políticos - mesmo que seja o que tu não votas; papel há por tudo, há para caralho, com vários brancos (leia-se espaços sem tintas) disponíveis - o próprio envelope de agora há pouco, o guardanapo - em último caso - ou primeiro, em vista da urgência - há a gordura expelida pela pele na ponta do dedo para marcar a janela - sem contar a areia, a faca etc. Erremos. Erremos muito, sempre, que o acerto errático está ali, fossilizado pelo futuro eterno, para ser achado, dissecado, explorado, suposto, confundido com o erro que o enterrou e assim o protegeu dos outros para que a descoberta fosse tua. "Acertar o erro" abarca todo o espaço disponível em voltar do vermelho no centro do alvo - o céu, a própria cara (um flecha selfie); confundamo-nos que já não interessa, interessa cavar, olhar para cima, arriscar, a agulha no palheiro e olha o palheiro etc. Erremos.

segunda-feira, 13 de outubro de 2014

Share it

Deixei de capturar, num intervalo temporal menor do que um dia, um vídeo e uma foto, ambos deveriam ficar altamente curtíveis. Ontem a certa altura de uma travessia pelo pampa gaúcho, do ângulo da janela do ônibus a linha do horizonte passou a coincidir intermitentemente com as linhas dos fios dos postes de eletricidade, ou seja, dada as suas naturezas geométricas, a linha reta e permanente do horizonte era atravessada pelas linhas parabólicas dos fios, que portanto ora estavam acima, ora abaixo, ora colados à linha do chão encontrando o céu:  nada menos do que uma dança abstrata, mas figurando-se claramente numa valsa silenciosa e privada, exclusiva da minha visão (a maioria dos passageiros dormia àquela hora, eu mesmo pouco antes dormia também). Hoje, já não só fora de um confortável banco num ambiente climatizado conduzido por motores, mas também sob a chuva, movimentado pela força de minhas próprias pernas (numa ação burocrático de volta para casa), vi um morador de rua abraçando-se a um vira-latas: este parecia um humano, tamanho serenidade com que o fazia, sem lamber, sem estardalhaço; aquele parecia um cão, tamanha incondicionalidade do ato, que superava a chuva e a vergonha social, ali sentado na calçada no horário de pico, num carinho direto e puro, carinho não raro tão reprimido de desconfiança na nossa espécie – o fato de um parecer o outro denunciava o que eram: que não eram nenhum nem outro, mas apenas a mesma coisa, duas criaturas vivas cingidas por afeto.


Em ambos os casos, a bateria do meu celular acabara instantes antes desses instantes. Mas a da memória não.

domingo, 7 de setembro de 2014

Tantoentre_teste


Desenhos meus digitalizados neste esboço virtual.
Os mesmos desenhos estão virando uma pintura também (vide abaixo).



quarta-feira, 6 de agosto de 2014

Os céticos acham a Astrologia incrível

A Astrologia é incrível. A afirmação, que parece vinda de um surfista ou uma atriz global (a quem geralmente qualquer elogio pode ser substituído por “incrível” no vocabulário), se considerada literalmente, é a opinião de alguns céticos (os céticos acham Deus incrível). Administrar doses de ceticismo é sempre útil, mesmo para os místicos, a fim de que não se banalize o mágico, que realmente existe, mas não é tão fácil e romântico quanto a forma a que geralmente o submetem. Eu, embora respeite os que pensem assim (e não digo que não vá voltar atrás lá na frente), não acredito que Jesus tenha ressuscitado (sou da linha de pensamento crente que os apóstolos esconderam seu (“Seu”, aos que preferirem) cadáver e começaram daí a bola de neve que virou o Cristianismo), mas acredito que seu (“Seu”, enfim) legado de gentileza seja igualmente grandioso, mesmo dispensando esses efeitos especiais apelativos. Já disse outrora: “Uma dose constante de iconoclastia sempre faz bem a fim de equilibrar o deslumbramento e euforia estimulado pelo sensacionalismo com que os assuntos são tratados num corpus coletivo. Beethoven não é Beethoven porque compôs surdo; é-o porque compôs o que compôs, com muito trabalho, desejo, esforço e inspiração” – para não me repetir, ofereço-lhes tal texto através do link http://www.joaogrando.com/2014/04/idolo-pedestal-individuo.html). Enfim, trata-se de observar um filhote de urso e diferenciá-lo de sua versão de pelúcia.

Dito isso, posso lhes afirmar com segurança que reconheceria entre cem, trezentos, mil o meu mapa natal astrológico. Asseguro que mesmo no ineditismo lho reconheceria. Semelhante confiança, embora compulsoriamente menos certa, já que não estou em outras cabeças que não na minha, tive em relação a mapas e relatos de outrem. Creio, então por experiência própria, na eficácia da Astrologia. Tanto quanto creio que as ondas de rádio e a da cor vermelha são feitas da mesma coisa, como creio que os férmions são muitíssimo menores do que os comprimentos de onda que se fazem visíveis através da cor violeta, como creio que o desvio para o vermelho observado daqui significa que o observado se afasta, que nosso universo expande-se, portanto. Normalmente os argumentos para explicar o porquê de minha crença na Astrologia ser uma tolice dizem que ela é generalista para que encaixemos as nossas especificidades nela, donde temos uma matriz que carimba que somente previsões vagas são feitas, que é do cérebro humano evoluído ver sentido nas coisas: indiretamente dizem que eu (e minha inteligência incluída) ingenuamente nos iludiríamos com truques como esses, que eu não perceberia minha combinação de características – probabilisticamente dificílimas de se repetirem – identificadas no meu mapa, as quais denotam desde traços de personalidade reconhecidos por todos até aspectos mais íntimos, ser apenas como um modelo casual ao qual eu selecionei o que me interessava. Inda que não faça sentido físico a maneira como os astros se relacionam pelo nosso específico ponto de vista terrestre, inda que o caminho do Sol pelo céu do nosso ponto de vista cubra mais e de forma diferente o que definiu-se como zodíaco pela observação babilônica, será que nosso conjunto de fés não pode formar algo? Vejo a Astrologia como uma invenção humana. Surgiu da observação celeste, mas evoluiu disso até tornar-se um sistema específico, uma linguagem, uma ferramenta, com suas regras internas e, dentro de si, coerentes, que se pode desenvolver puramente, mas pode se aplicar, condicionada a quem o faça, ao uso humano. Neste sentido, não é diferente da matemática (que da contagem de bois hoje comprova o funcionamento do Universo), das línguas (que dos grunhidos misturados a gestos hoje estrutura nosso raciocínio).

O método científico indubitavelmente foi um dos principais motores da nossa evolução. Assim como o aumento do cuidado com a higiene. Mas mesmo essas duas unanimidades têm seus efeitos colaterais. Precisamos de pés no chão: na conotação metafórica, com a segurança do método, mas também, na conotação literal, para sujá-los. Talvez perdemos muito desprezando o não comprovável. E não podemos nos afastar do que nos estreou como Sapiens: os nossos rituais, a nossa mágica, a nossa aceitação de mistérios que podem funcionar por si só, inexplicavelmente. (Até porque quem poria a mão no fogo dizendo que a física não provará a alquimia, no futuro?) Como se a nossa semelhança genética, em nível de espécie, fosse, porque provada por método científico, superior ao misterioso engendramento – rotulado apenas de casualidade – que levou primeiro a nossos pais se conhecerem, depois a escolherem a palavra pelo qual seremos chamados a vida inteira. Não sugiro com isso que se deva dar mais (ou mesmo igual) importância à numerologia em relação à ciência, tampouco que não haja charlatanismo, mas eu não desprezo conhecimentos e estudos milenares contrastando alguns maus exemplos de seu uso a matérias científicas já consagradas.

Para derrubar uma cultura construída com colaborações incontáveis através de gerações e em lugares os mais distintos, há milênios, o que os céticos fazem? Comparam vidas de gêmeos, verificam se previsões objetivas de astrólogos se cumpriram, testam a ingenuidade de pessoas (quaisquer) as submetendo a testes com soluções casuais abrangentes para provar que elas, como ratos de laboratórios, acharão suas especificidades ali contidas. Enquanto no Céu, que, pasmemos, não é, neste caso, nem a nossa atmosfera de azul claro privado tampouco o vasto vácuo incalculável sideral, mas apenas uma dimensão intangível, os Signos, com sua carne erigida por séculos e séculos embalados por milênios de sincronizada imaginação humana, evoluída de uma leve trama de saberes até, espessada pela fé das pessoas, tornar-se primeiro tecido, depois ossatura e finalmente corpo, o imponente Carneiro de Áries, a puríssima Virgem, a precisa e justa balança de Libra riem-se das bombas feitas de planilhas de Excel alimentadas por dados e porcentagens, lançadas por frágeis e perecíveis completadores de padrões e formulários, cuja crença no que conhecem vale-lhes por tudo o que existe e poderia existir. Como se o magnífico Centauro de Sagitário ou o conteúdo de magnitude e forma livremente voláteis da área do Aquário fossem desperdiçar suas energias para ajudar os que querem os (não) comprovar em vez de remeter seu conhecimento acumulado das nossas próprias mentes para ajudar algum espírito sincero que queira alguma esperança, alguma clarividência, algum autoconhecimento que não se baseie em padrões de amostragem. Como se nada além do comprovável nascesse conosco.


Meu mapa astrológico natal, cortesia de http://www.personare.com.br/

segunda-feira, 4 de agosto de 2014

Forma x conteúdo

Percebemos, só de viver, só pelo nosso humor, que o espírito tem dimensão incalculavelmente volátil em relação à dos limites científicos impostos pelo corpo: às vezes nosso espírito está tão pequeno que parece não ter força para percorrer o então denso túnel do braço, a ponto de não alcançar a mão e muito menos o dedo para pressionar o botão do controle remoto, que se dirá para levantar toda aquela medida de ossos, órgãos e gravidade da inércia segurada pelo sofá. Porém, noutras vezes – para apenas comparar os extremos opostos –, num movimento que podemos chamar erupção, o espírito varre qualquer materialidade regular, do ponto infinitesimalmente mais interior a qualquer zênite externo de coisa medível, e parece que o corpo (já agora um vácuo) não contém tal avalanche multidirecional e, a fim de evitar uma explosão, reage disfuncionalmente – dado não estar colhendo seu alimento, não estar cuidando de sua cria, não estar se defendendo de um adversário – para dispersar o espírito excedente em (exemplifico com dedos nervosos à procura de um teclado ou caneta) texto, imagem, ato corajoso, choro, riso, grito, soco, beijo, ataque de nervos. 

terça-feira, 29 de julho de 2014

Dia Tigrino

Eles estão no zoológico, nalgumas jaulas domésticas, em circos, em braços, bundas, lombares e pescoços através de tecidos (tanto da Dolce &Gabbana quanto d’A Barateira ali do Centro) ou de tinta tatuada (às vezes com aquele defasado contorno verde marinheiro, às vezes subvertidos em formas fofas identificáveis apenas pelas listras – quase um Care Bear trabalhado na animal print), estão em camisetas (muitas minhas) e estão, ainda e infelizmente, num chão qualquer por aí, sem qualquer vida, jogados de qualquer maneira, ironicamente com os olhos abertos, para terem seus caninos (os maiores entre os felinos) moídos para virarem viagras placebianos.  
Mas o lugar do tigre é na natureza, onde, na neve, ele, dizem, come até ursos pardos e lobos (sim, faz do terrorista da narrativa infantil seu desjejum, suplementa proteína com o Lobo Mau); é da natureza, onde, na densa selva equatoriana, ele vive tão escondido e tão influente quanto uma partícula elementar, numa subespécie que tem menos da metade do tamanho da sua versão siberiana, mostrando que fez sua parte e adaptou-se a um continente inteiro, o maior deles, aliás.

Quem me conhece ou conhece meu trabalho criativo sabe que geralmente eu considero observar a maior parte de faces das questões antes de cristalizar algumas certezas, que ainda assim são certezas radicantes, funcionais. Mas quem me conhece também sabe a minha incondicional idolatria nutrida pelo tigre. Entre incontáveis exemplos dela, cito que uma vez cheguei a sonhar que me transfigurava num tigre, inclusive com a perda da consciência humana, com aquela sensação realista do impossível que só o nosso córtex livre na privacidade do R.E.M. consegue; já desenhei, desde antes mesmo de saber escrever, provavelmente milhares deles, fiz histórias (numa delas, uma hora inda publico, o admirador de um tigre é obrigado a matá-lo para salvar a família) etc. Na minha infância sempre ouvia em contos e afins infantis o leão como o Rei dos Animais (porque o Rei da Selva era o Tarzan), porém simpatizava mais com a figura do tigre, embora ela fosse geralmente representada injustamente menor e menos ética que a do leão. Porém o conhecimento clareia e retira as sombras que se passavam por formas (ou formas das sombras), tão comuns no grosseiro imaginário popular. Então o tigre revelou-se a alternativa de realeza sem a opulência do leão, porém com tantos ou mais propriedades do que ele. O leão representa a unanimidade fácil, como uma euforia popular; o tigre, a verdade sem ilusões, mas tão poderosa quanto a ilusão. Rebati realeza manifesta metonímica da juba do leão ao conceituar que o tigre é da cor que a luz do Sol imprime quando vem do céu à terra nas divisas entre o dia e a noite e carrega na própria pele pedaços de sombra: há na forma tigrina algo de síntese, de harmonia, de magnificência cordata, sem deslumbramento, como se o tigre representasse como as coisas são e o leão como as coisas parecem ser.

Claro que, além disso, como a maioria dos meninos, eu gostava mais de tiranossauros e grandes felinos do que de garças, antas e sacis. Felinos têm grande apelo popular, contêm o assassino, o fofo, o pet, o preguiçoso, o ágil, até se passam por pássaros (com quem não poderiam competir na causa de inveja humana, devido ao voo), ao subirem em telhados. Talvez o tigre seja o animal mais admirado do planeta – uma pesquisa revelou ele ser o animal preferido das crianças, acima do cão, do gato, do panda, do cavalo, do golfinho etc.
Hoje, como com tudo o que admiro, o tigre se encaixa numa harmonia geral: à medida que se olha algo, passa-se a observar mais a tinta do que as figuras que ela formou e se vê que tudo faz parte de um todo. Assim, a despeito de preferências conceituais e afetivas, não há como não admirar em igual medida o atum, a hiena, o tarso, o vira-bosta (que, a despeito do nome popular, é um pássaro de penas azuladas e brilhantes lindíssimo).

Se Rafael hoje em dia popularmente vive à sombra de Michelangelo e Leonardo, exceto no Teenage Mutant Ninja Turtles, ele já foi referência máxima do Renascimento Ocidental. Há constante debate, ou seja, há constante conflito, transformação, troca de reis. Mas a arte é uma invenção imortal. Inda que a consideração diminua, a obra de Rafael (ou a composição de um músico anônimo brasileiro qualquer do século XVIII) inda existe em estado potencial, em repouso, talvez esquecimento, mas apta a ser acionada. Quando falamos da dança das cadeiras do mundo biológico, mesmo que as configurações orgânicas possam simplesmente alternar-se de uma espécie a outra durante as eras (um girassol ser feito de fezes e ossos jurássicos que se vão reengendrando infinitamente), falamos de espécies que nunca mais serão vistas.

O mundo se movimenta. E em todos os seus níveis. E em todos eles a transformação, portanto, é constante (as partículas elementares, as galáxias, o maciço chão sob nós, tudo está sempre se movimentando – e mudando). Ao que nos resta constatar, não sem melancolia, mas com muito mais lirismo, diria, os que já não estão aqui, e isso inclui avós, pterodátilos, crianças que não existem mais nas suas atualizadas versões adultas. Resta constatar, não sem fascínio, mas com muito mais elucidação, os encaixes de uma espontaneidade que de tão fluída parece não se autenticar, parece anterior a si mesma, planejada. E de qualquer ponto de vista, em tudo em que inclua a melancolia, o lirismo, o fascínio e a elucidação há séculos – e mais ainda no penúltimo e muito mais ainda neste último que inicia o milênio – vemos uma transformação da selvageria, que sai da natureza a qual mantinha para atos cotidianos que a molestam. Ela não cede (sempre que querem, oceanos, ventos, vulcões etc. mostram quem ainda manda na Terra), mas quanto ao seu legado nada pode ser feito. E, destruída ele, destroem-se seus espetáculos diários não televisionáveis, seus extremos inexploráveis, seus mistérios, potenciais soluções, mensagens – e ele por si só.  

Representante da excelência do mundo orgânico (e qual animal não é?), dotado de habilidades inatas e inteligência suficiente apenas para fazer sua parte, o tigre vive no espaço que lhe restou do leste asiático, justamente a zona mais habitada do planeta pela espécie que saturou sua inteligência numa gama do livre-arbítrio que abarca tanto o anjo protetor como o sádico assassino.

Usa-se a palavra “magnicídio” quando um nobre (na acepção oficial, burocrática), chefe de estado ou celebridade é assassinada. Dela extraio um neologismo: magnificídio – o assassinato (e não a morte natural) do magnífico simbolizado na extinção do tigre. Tentar salvá-lo não é somente uma tentativa específica, é dar um passo afirmativo e esperançoso na direção dos mundos possíveis nos quais a inteligência se responsabilize em vez de se aproveitar abusivamente. Além disso, pensando estrategicamente, salvá-lo atende tanto à caridade do nosso sentimento por um cão abandonado quanto à admiração pelo poder, isso tudo acordando com a agenda mundial de sustentabilidade.

Evidentemente doar é a solução mais simplória, mas é também um ato simples (dificilmente se repete a reflexão financeira dispensada ao ato de doar com o ato de comer (mas antes comprar) um sushi, ou uma à la minuta, ou com uma porção de cervejas que não raro termina quente, abandonada, sem cumprir o seu destino): o ato simples de ajudar a dar ferramenta a quem se dedica à questão – e eu acredito na sinceridade dos que fazem este trabalho, pois eu tenho vontade de fazê-lo e, embora tudo que envolva o dinheiro, esse tentador poder líquido, mereça nossa atenção, a sinceridade crida a que me refiro vem refletida de uma sensação pura que me sublima (capacidade reservada apenas a algumas criações humanas, ao sentimento de justiça, aos laços afetivos designados por sangue ou pelo destino – é como ouvir uma sinfonia, como ver o sorriso de um bebê: o compartilhamento de uma abstrata e absoluta noção de que, naquele ponto do espaço-tempo-sensação, aquilo é o que podemos chamar vida e o resto é supérfluo, como se exposto a uma dose constante e moderada vinda de um núcleo da verdade, emissor de todas as epifanias).  

Que seja a doação já alguma coisa. Como é alguma coisa alguma consciência espalhada pelo mundo (textos, fotos, compartilhamentos são capazes de induzir o caminho da transformação que compulsoriamente promovem) talvez ela extinga, em vez dos tigres, suas mortes banais. E que outras coisas sobrevivam sob seu guarda-chuva alvi-âmbar-negro, com seu sangue vermelho, olhos verdes e amarelos sobre um terreno verde, sob o céu azul protetor dos nossos minerais marrons.

Link da campanha #DOUBLETIGERS da WWF (obrigado, Renata Grando)



segunda-feira, 14 de julho de 2014

Luísa is luz


Apresento-lhes oficialmente a minha sobrinha, Luísa. Ela é filha de minha irmã de sangue com meu irmão de coração; este, inda que seja um polaco que em nada se parece comigo, é também da minha família, já há ¼ de século; aquela, embora obrigatoriamente tenha se criada comigo, por obrigação nenhuma sempre foi minha amiga, de troca de confidências, de viagens, de brincadeiras, um farol, alguém que sempre me ensinou a questionar, a ver diferente. E eis que, voltando ao assunto, eles juntos tiveram a Lúli. 
Eu até já a homenageei escrevendo-lhe um poeminha, meio bobo para os meus padrões e anseios estéticos, mas incalculavelmente volumoso e absoluto em convicção, comparado às convicções tão diluídas que surgem de outros empreendimentos criativos, onde o que me encanta é a dúvida e as forjas de certeza – e os bebês são um pouco assim, uns seres humanos um tanto simples, mas que emanam tanto futuro próprio, tanto passado herdado e nos dão a dimensão do presente exata, quando nada mais à volta, à frente ou atrás importa. 

Venho então lhas apresentar oficialmente, já que ela agora é também oficialmente minha afilhada (e que a minha amada e irrepreensivelmente linda de fofura e iluminada de alma Manuela não se enciúme, que ela tem seu lugar comigo). Minha afilhada e de minha esposa e de minha outra irmã (minha outra melhor amiga, aliás). 

Luísa is luz e veio à luz no dia 18 do 5, 9 para as 9. Desde então ela me vem encantando, e não por nepotismo, mas por me jogar na cara este ordinariamente miraculoso caminho da vida humana: o bebê nasce e continua nascendo a cada dia: numa semana nasce sua visão, numa outra, sua noção, depois outra noção de algo que ainda não tinha noção; e quando vê, ela vê, ela olha, olho no olho, para ti (para mim!), donde que eu penso – “o que pensa ela? Como é esse pensamento livre das poluidoras palavras e antes delas conceitos? O que ela aprendeu de novo hoje? Que existe uma coisa amarela e outra vermelha? O quê?”. Dia desses, eu me esfolei estalando os dedos e funcionou: ela me olhou fixo, impressionada com o som e movimento: consegui chamar sua atenção! Ela, sei lá, tentando entender o que era aquele monte de cabelo e nariz, se era planta, animal, um planeta - mas nada disso importa por ora, é hora da novidade, e ela olhou para aquilo tudo e parou de chorar – e me fez só rir, sorrir. Pela vida que ela me mostra; e também por ela, só ela, sem conceitos e palavra, tentando equipar-me à sua instintiva pureza, sorver sua incontornável beleza, a raríssima beleza sem contraindicações.




[Publicado originalmente no http://facebook.com/joaogrando

Meteoro de Gaza

Mesmo a ciência, que – numa definição simplória – teoricamente se fundamenta em observações comprovantes, gera conflitos de opiniões e consequentes correntes, o que dizer dos assuntos de humanidade? O mais sensato seria assumir a relatividade inerente a eles e estabelecer um campo comum e dessa sobreposição sintetizar o que há de bom e eliminar o que há de ruim (mas o que é bom e o que é ruim?); mas talvez isso seja desumano, e humano seja o desafio de tomar partido em meio a tantos fatores, consagrar a escolha, o livre arbítrio, que é algo que nos distingue das demais espécies.

Mas é um processo complexo, no há que se levantar constatações. Ou simplificá-lo na confiança que se pode dar ao que chamamos coração, embora ele possa se (e então nos) enganar. E não sei se o meu se enganou, mas quando penso no Oriente Médio, penso sempre no sofrimento que deve ser viver na Faixa de Gaza – claro que pensar em ambos os lados me traz de volta à tona o que haveria de responsabilidade nisso, no que Israel não poderia deixar de fazer e no que se romantiza dos que são vítimas em proporcional demonização dos que têm poder.

O fato incontestável é que se há paraísos na Terra para os quais podemos ascender por alguns dias mediante o pagamento de algumas prestações e comprovar com fotos e souvenires, há também alguns infernos diluídos no nosso vasto território e a Faixa de Gaza é um deles; ao contrário dos paraísos, não precede escolha.

Tudo isso resultou na produção do vídeo abaixo em 2011, que, a seu modo, segue atual: a melancólica constatação do impossível (talvez seja sempre melancólico tal movimento) e a celebração de sua possibilidade apenas estética, para que a ilusão guie nosso coração e talvez nossa escolha, nossa escolha humana.



sexta-feira, 27 de junho de 2014

Escaneamento intermitente de momentos para fotomemorização

Quando as direções opõem-se e esse cruzamento benigna e oportunamente é fruto também de caminhos rotineiros, há que investir num processo construtivo: é preciso disciplina diária com o horário e coordenadas da passagem; é preciso mapear dia a dia o rosto, e dentro do rosto os seus olhos, a boca nele, em volta dele o cabelo – se necessário, focar num lote predefinido por dia, inda que atento a improvisações (talvez numa ajeitada de cabelo revele-se a orelha), e sem desprezar a fundamental impressão geral do resto, o conjunto, das transições dinâmicas para capturar a lógica do movimento e poder o simular mentalmente. Inicialmente, mister fazer algumas associações plásticas, mas não exagerar com referências humanas para não substituir o objeto original por uma personagem sua, uma atriz vinda de outras memórias. É preciso treinar a montagem da imagem, repeti-la, ajustar o esboço, a fim de que a lembrança seja fiel, seja como presente nos outros oitenta e seis mil trezentos e noventa e poucos segundos que não aqueles alimentados pela luz primordial entre uma sessão e outra. Da tua via, ofereça-se no melhor ângulo e, aparentando a outra parte o mesmo, pára, posa, confira a hora no relógio, inventa algo para ter esquecido e justificar sua paralização, amarra o cadarço, sei lá, um carro que impeça de atravessar a rua –ofereça generosamente tua imagem para ser fotomemorizada. (Todavia equilibre também isso com a efemeridade, para que a dúvida lhe beneficie no magnetismo da curiosidade.) E, já se tratando de um paraíso, de estratégia a longo prazo, quiçá converse, grave a voz, encoste.

quinta-feira, 29 de maio de 2014

(Letra/Música: Che/Korda)

(Letra/ Música : Che / Korda)

Sobre alvíssimo
uma janela se abriu pelo tempo suficiente para
que cada fio de luz marcasse sua cara
em prol de uma cara maior.

Não era um papel
(nem camiseta, biquíni, adesivo),
era o rosto.
Tampouco este,
face haver faces ali.

Ele poderia estar piscando, gargalhando,
irritado, em dúvida ou fazendo uma careta,
o cabelo mexendo, o charuto na boca,
uma brincadeira com o charuto usando a careta.

As possibilidades que antecederam e as que se seguiriam.
O mistério: igual.
A fúria: igual.
A felicidade: igual.
Todos iguais num berçário.

Hoje em dia não há tempo para igualdades,
o que repete ou se repete fica um só, o resto se elimina.
Um só representando. Ali, ele.

Ali, ele e o potencial do riso, de fúria, de surpresa.
A voz do povo no linguajar de deus.
Na face séria, as faces todas repousadas,
podendo serem a qualquer momento.

O longe: para receber o olhar;
o botão: para receber o dedo:
a morte de cada fio de luz por uma vida maior,
morta por uma vida maior.

Uma vida menor ante uma bandeira
(camiseta, biquíni, adesivo).

E nós, com a inteligência superior à da fotografia,
no Olimpo de mover-se,
vemos os adultos mortos que na vida da foto
nem nasceram ainda,

que morreram em outubro, nove do dez de sessenta e sete,
mas reencarnaram seus espíritos
sob a forma de outro corpo:
1968

(Poema escrito por volta de 2004, 2005.) 


domingo, 18 de maio de 2014

18/5, 9 para as 9

Luísa, menina,
antes você era uma ecografia
"é menina", "será Luísa"
agora você é,
você já na terra,
tua consciência em expansão inflacionária

Saiu de uma barriga que era um mundo
para exibir sua barriga própria ao
nosso mundo, a barriga e todo o resto
rosa, aliás

Hoje é um dia
igual para quase todo mundo
alguns almoçaram num restaurante
outros foram ao cinema
outros amanheceram com febre
outros se mudaram
outros se casaram
outros foram ao shopping
alguns disseram que começarão uma academia
mas você, você nasceu!

Já há alguns meses
nós te imaginávamos,
a tua imagem
à imagem e semelhança
dos genes dos teus pais, meus queridos irmã e irmão,
da nossa família de tantos tão queridos
que já não estão por si, mas estão por deixarem
para ti alguma compulsória orientação
de como ter uma orelha, de como se comportar, a que altura crescer, alguma cor
para ti e que de ti será deixada,
como tua mãe foi filha, e a mãe dela, avó, e a avó dela, bisneta

(em honra também
da vida do teu irmãozinho
que não conheceu o ar,
mas que agora tem todo espaço do mundo,
que agora pode tudo e por poder
ele lhe manda uma estrela*
(*ser-nos-á sempre uma brilhante))

Bem-vinda ao
nosso mundo
Saia e fique à vontade
há tanto que você pode fazer!

À luz, Luísa:
você já existia
mas agora você existe.


[Em homenagem à vinda à luz da minha sobrinha Luísa, nascida às 8h51 de domingo, 18 de maio]

sexta-feira, 16 de maio de 2014

sob/re criar






"(...) entre a parte que domina/ e a parte que se rebela,/ entre o que nela cavalga/ e o que é cavalgado nela, (...)" [João Cabral de Melo Neto, ensaio para uma bailadora andaluza, § 2]

"A criação é divinda; a execução, servil." [Atribuída por aí a Leonardo da Vinci.]


Há imagens que se criam como vômitos; outras, como projetos. Outras tantas, talvez a maioria, como uma lógica mistura de ambos (poucas coisas não são misturadas no nosso mundo – fundamentalmente, aliás, nosso mundo vem da mistura). A diferença entre a puramente vomitada e a projetada (ou parcialmente projetada) é que a projetada não pode ter o formato espontâneo do vômito, ela necessita da resolução de uma série de problemas, geralmente demandantes de um excedente temporal (tempestivo sob a escala de todo o processo) relativamente ao ato inspiratório – o qual, no caso do vômito, é imediatamente expressado, posto para fora.

A inspiração e/ou idéia para um soneto pode surgir impetuosamente, mas será preciso engendrá-la no formato de quatorze versos regulares; é sim uma vontade, uma missão, uma visão, o compartilhamento epifânico, mas é preciso encaixá-lo na rima e na métrica nos seus respectivos (e cabem-se do mesmo modo misterioso, encoberto - para que seja descoberto) tercetos e quartetos. É a diferença entre um soco na cara de quem lhe importuna versus a missão de construir uma arca – há algo de descobrir na montagem do soneto (que segue sendo aqui um exemplo), como dizem dizia Michelângelo extrair do mármore o que já estava lá, como um cão farejador que cavava com uma técnica primordial.
O soneto como um vômito organizado - ou como alguma outra excreção regular carente de processos fomentadores.

(É tudo muito parecido: esculpir, arquitetar, dar forma matematicamente precisa a um embalo mental etc., ou mesmo a construção experimental - trata-se de uma paradoxal síntese de extração e acúmulo, uma extração do acúmulo, um acúmulo de extrações; síntese de inspiração e trabalho, de liberdade e disciplina.)

Já há uma taxa de organização no sentimento vomitado que é escrito (ou pintado, ou musicado etc., enfim, manifestado, ficarei no “escrito” para fins de exemplo), já que ele não era um escrito originalmente, mas a reação imediata para congelar a pulsão mental traduzindo-a (mesmo que de origem emocional, processa-se no cérebro, ou onde quer que esteja espalhada a mente) - a não ser quando se vomite epistemologicamente, fruto isso da nossa evolução linguística, de pensar textualmente, quando o enjôo precedente ao vômito (pleonasmo dizer dele compulsório) não tenha sido uma sensação abstrata a ser traduzida, mas a própria forma pronta, pensada já na própria plataforma, especificamente. Para não sair do exemplo escrito, uma metáfora da versão inspiração-planejamento repousaria suavemente num retrato falado da vaga lembrança do que repletou a mente na sua própria linguagem multidimensional (sem margens, sem limites cartesianos).

(Essas forjadas diferenciações só existem na esfera material, já que na mente os processos geradores são inclassificáveis, o vômito, qual a ejaculação, pode ser apenas a catarse de intricadas sucessões que se complexaram indeterminadamente.)

Falo-o porque trabalho concomitante e diuturnamente (em pensamento, e quase idem em trabalho efetivo, de execução) num soneto de hendecassílabos e no trabalho da imagem abaixo, construída no que por ora se vê, construindo-se já há algumas semanas (talvez duas passando para três) e que continuará a ser construída até o seu momento de abandono borgeano, e seguirá inda viva numa versão pictórica – oficialmente o visto a seguir é um dos meus preparatori (seus cento e tantos por outros cento e tantos centímetros tornar-se-ão uns 144 x 188 cm na tela de algodão) – e trata-se de um momento soneto, é definitivamente um soneto visual:
 
  
 
 
 
 

quinta-feira, 1 de maio de 2014

Sobre trabalhar


Um escrito numa folha do diário aberto de minha esposa, provavelmente escrito entre 2002 e 2004. Uma clássica do Dia do Trabalho que sempre compartilho no Facebook e afins é esta aqui ó


domingo, 27 de abril de 2014

Zeus com Mal de Alzheimer no 3º milênio

Para os interessados, há uma camiseta à venda na www.camelbird.com.br com essa estampa. Aliás, várias coisas sobre papel, ~100 x 70 cm. 


quarta-feira, 23 de abril de 2014

Ídolo (-) pedestal = indivíduo

Uma dose constante de iconoclastia sempre faz bem a fim de equilibrar o deslumbramento e euforia estimulado pelo sensacionalismo com que os assuntos são tratados num corpus coletivo. E essa dose põe no devido lugar gente como Senna. E gente como Michelangelo, Shakespeare, Machado de Assis, Picasso, Beethoven, Einstein, Jesus, Galileu, os Beatles etc. 

Após a queda de um pedestal estranho ao corpo do indivíduo, temos então logicamente somente o corpo e assim sua altura correta – e seus lugares continuam brilhantes, geniais; mas não mais mitológicos. Porque a mitologia nos faz anabolizar episódios para justificar a super-humanidade dos feitos – que em verdade não são feitos únicos, mas destaques erigidos de uma rede de atenção que os isola de feitos semelhantes. Beethoven não é Beethoven porque compôs surdo; é-o porque compôs o que compôs, com muito trabalho, desejo, esforço e inspiração. Michelangelo, Einstein e Picasso não partiram do zero – digamos que eles chegaram a um 10 e que antes dele muitos construíram um caminho até o 9,5, 9,8. Jesus poderia ser Jesus mesmo sem que necessariamente tenha sido preciso ressuscitar. Somos, sempre fomos, todos humanos. 

E essa humanidade, essa igualdade teórica de potencialidade entre todos os que já existiram é que deixa seus feitos ainda mais brilhantes, embora menores – como rubis verdadeiros, com suas pequenas impurezas, ante enormes e homogêneas pedras rubras de bijuteria.

sábado, 8 de março de 2014

8 de 3

∞ / <3

Já incontavelmente falei/pensei/escrevi sobre mulheres, sobre feminilidade, reações à configuração cromossômica que não é o do meu corpo.

Mas a questão do dia celebrado mundialmente hoje é outra.
Pode ser promíscua, pode ser workaholic, pode ser atleta, pode ser rude, delicada, pode ser casta, pode ficar com quem quiser (inclusive ninguém), pode ser dona de casa, pode ser incontrolavelmente sensual, pode vestir moletom o dia inteiro, viver para os filhos, nunca ter filhos, bolsa dourada, bermuda de skate, saia rosa, não ser nada disso, pode ser qualquer outra coisa: a questão é o direito de toda mulher não deixar de ser o que quer que seja só por ser mulher.



[Publicado originalmente em 08/03/2013, no http://facebook.com/joaogrando]



quinta-feira, 6 de março de 2014

má_mágica

"A fé não ajuda quando o problema é a possibilidade de fantasmas. Aliás, ela é que gera o problema, no caso."
@joaogrando em 10 de agosto de 2012


Eventualmente submeto-me a um exercício mental vicioso que consiste em invocar algum sinal que manifeste a presença de uma entidade funesta, algo como "se o diabo ou algum espírito maligno estiver aqui, a luz irá se acabar agora"; da pergunta lançada seguem-se instantes de temor paranóide, tanto pela eventual resposta quanto pela masoquista necessidade de inquirir novamente a cada negativa, a fim de dar-lhe outra chance de confirmação, naquela atividade típica da mente aquecida quando não tem sua energia canalizada (cabeça vazia morada do diabo) e faz dela sua própria força implosiva - o raciocínio levando ao fim da razão por um colapso gerado pela saturação. 

Imaginai agora o dia em que essa infeliz coincidência, através de uma falta de energia comum, acontecer? Pois que às vezes eu tomo banho de madrugada – e a madrugada até poderia ser definida, para fins deste texto, como qualquer horário à noite em que se está sozinho em casa –; ao fechar os olhos para enxaguar o cabelo, às vezes começo a pensar se ao abri-los não haverá alguma manifestação à minha frente; e nem me refiro a uma idosa já em estado de decomposição ou mesmo uma criança com a pele muito branca – para falar dos exemplos mais explorados nos gêneros de terror –, qualquer manifestação – poderia ser uma capivara – seria motivo para o pavor. Ou, talvez pior ainda, que em vez da sala que se apresenta ao sair do banheiro, abrir-se-ia um precipício.  

Devido à intensidade, o momento se expande e toma para si o tempo total, a situação sugere-se permanente: já projeto que na manhã seguinte todas as pessoas que estão à minha volta se revelarão extraterrestres que me domesticaram, abrindo seus olhos luminosos para mim após décadas de simulação. Ou simplesmente a faceta mais remota do tempo, aquela em que definitivamente não estaremos aqui, nem eu, como ser vivo, tampouco nós, como espécie, torna-se o foco retumbante dos propósitos, que passam logicamente a serem inúteis a partir dessa escala. 

Em meio a esses questionamentos, como é típica da reação medrosa, a nossa atenção eficazmente se maximiza e se preparar para o pior: o barulho da descarga do vizinho vindo pela janela do banheiro soa como o rugido de uma besta.

Independentemente do nível de realismo, qualquer possibilidade é assustadora caso a expectativa se confirmasse. A aparição abrupta de uma idosa, por exemplo, se defeso num ceticismo irrevogável, revelaria uma hipótese inda pior: a de que a figura então à minha frente seria a criação de uma doentia mente esquizofrênica e não um fantasma pertencente ao plano físico que interage (o plano, não necessariamente a figura) com todos. A perturbação, além de manifesta, seria privada. 

Uma possibilidade cética e que anula o terror se baseia no modelo em que a realidade é um mosaico continuo e dinamicamente formado de modo aleatório pelas partículas elementares, de tal modo que o esperado (o banheiro ser simplesmente o banheiro) tem 99,999999999999999999999% de probabilidade de sê-lo, já que as formações estranhas a um banheiro (uma textura de pele, por exemplo) ficam invisíveis na medida em que não se engendram satisfatoriamente para alcançar a densidade de serem vistas, de virarem imagem. A partir desse sistema, a sequência combinatória das partículas gerará tudo ao longo de trilhões de trilhões de trilhões de anos, e ocorrerá de num futuro remotíssimo essa faixa organizada das combinações (o mundo real, como o conhecemos) se perder por completo, um retorno ao caos, uma desconstrução efetiva da materialidade (como a que a arte, como sempre, previu). Mas nada impede que a improvável combinação que gera uma figura ocorrer alheia à massa óbvia da probabilidade maior, como deve acontecer lá muitíssimo raramente em tantos espaços desabitados ou mesmo inabitáveis da atmosfera do nosso planeta (um caça-níquel quadridimensional de escala incalculável). Numa dessas, tu podes ser o azarado a presenciar tal raríssimo alinhamento, tal bug quântico sincrônico. 

Aliás, em 2004, na ocasião da construção de um poema, defini minha teoria sobre a aparição de espíritos: quando morremos, nossa alma se decompõe junto com o corpo [vide o texto “Alma gêmea de tudo”]. As partículas são imortais, mas, a partir da morte do indivíduo, ficam livres e, como tais, tendem a se separar. Nalgumas pessoas a negação da morte fica embutida na vibração e, quando ela chega, a energia própria de cada partícula não está preparada para seguir em frente e, ao invés de partir, tenta retornar aonde estava (algo de Síndrome de Estocolmo) – uma vontade de voltar ao passado (ou mantê-lo como presente) elementar. No caso do fantasma, uma considerável parte das partículas tem essa energia retrógrada, então o esforço conjunto é tanto que conseguem se reunir de maneira suficiente para atingir parcialmente a materialidade, mas, já sem a misteriosa liga da vida, não podem sustentá-la por muito tempo (o que explica a aparição) e sem a densidade suficiente para ser sólido (o que explica a vaporização dos espíritos, que atravessam paredes, que sempre têm um grau de transparência nas representações ficcionais). Isso também explica porque a sabedoria antiga ensina que só os fantasmas de mortos com pendências em vida voltam. Porque eles são nada mais do que o esforço coincidente de várias partículas que se separaram em permanecer num lugar com o qual já tiveram o ciclo encerrado; como um ex-aluno de uma universidade que não teve sua vida adulta bem sucedida e tenta retornar à vida de estudante – isso é comum com um aluno que outro, mas imaginai quase uma turma inteira? E se resolvessem todos voltar ao que eram, viver a vida que tinham? Poderiam usar as mesmas roupas, frequentar os mesmo lugares, até voltar à universidade. Seguramente não seriam como a turma original, mas não seria difícil identifica-los – o fantasma é sempre um eco malfeito de seu original. É um remendo das partículas verdadeiras, mas não o seu encaixe perfeito. As partículas se reúnem: talvez não as partículas que lhe davam cheiro, não as partículas que lhe davam som, mas as partículas que lhe davam imagem (assim sendo, haveria também vozes do além, ou fantasmas em forma de cheiro, mas que indubitavelmente não chamam tanta atenção quanto as manifestações visuais – já vi parentes meus revelarem sentirem cheiro de pessoas queridas finadas em determinadas situações). E ainda assim é praticamente impossível que a imagem se projete integralmente, então a pessoa aparecerá sem um braço, ou o tronco meio esfumaçado, ou apenas com um esboço da cabeça: como uma foto exposta tempo demais ou de menos à luz.  
O resto é o exagero dos relatos que a ficção absorve e sistematiza, da mesma forma que a língua mal pintada de um lagarto tornou-se um labareda de fogo, fazendo do lagarto um dragão (inspirado por lendas chinesas) e, a partir daí, os exagerados e os filmes americanos fizeram o resto para transformá-lo num brontossauro rococó lança-chamas (não à toa as sereias, de horrendas águias com cabeças humanas, tornaram-se a pequena Ariel).

Tais momentos se revelam como epifanias avessas, duram por um breve momento, geralmente na casa dos minutos. Embora a sensação possa perdurar, como a lembrança de uma dor física que não se sente mais, por mais tempo.
Num dia desses, num dia assim como esses descritos, eu estava deitado na cama sob uma meia luz de um dia nublado já quase anoitecido (uma madrugada funcional), eis que as lâmpadas do quarto deram para piscar sozinhas, com o interruptor indubitavelmente desligado. Uma pesquisa breve na internet salvou-me do desespero maior (há explicações técnicas para o ocorrido). 
Quanto não se está em depressão parece ser tão fácil não estar em depressão e quando se está em depressão parece impossível não se estar em depressão. O mesmo serve para apaixonado. Ou frio – talvez aqui tenhamos a mais eficaz metáfora: nossa lealdade à temperatura: ninguém fica de casaco se a temperatura beira os 40 graus porque fez um pacto com o casaco ou acredita no frio. 

Passado o momento, retorna-se à estabilidade da posição de normalidade e a retrospectiva do fato não se torna novamente o fato, virando apenas uma lembrança, não raro humorística. 
Graças à nossa fé no normal, no cotidiano, no óbvio; à fé que nos levará de volta para a absoluta maioria dos dias da nossa vida em que coisas mágicas não acontecem. Num momento de terror como esses, é preciso crer, com toda a fé que se adiciona à palavra “acreditar” no seu sinônimo “crer”. Crer, com toda fé, no crível.
Entrar na cozinha e torcer muito para que as cadeiras estejam no chão e não no teto; acreditar que ao abrir os olhos não haverá qualquer coisa que já não estava lá quando se os fechou; e que no passo acelerado entre o interruptor recém-desligado e o quarto a luz barroca da sala iluminada de longe por outro cômodo não reflita nada no espelho a não ser o que se espera ordinariamente refletido – que só os meus olhos me olhem. 


[NOTA]: embora tenha escrito o esboço embrionário desse texto há mais de um mês, deixei para publicá-lo agora após o Carnaval - e ele já estava pronto antes do feriado. 
Pois que anteontem, 04/03/2014 – a nota trata-se de uma coincidência –, tive meu primeiro (e espero único, o último) ataque de pânico, no shopping Pátio do Batel, em Curitiba. Pouparei a nós todos dos detalhes, mas já posso dizer que, de tão por ora superada, já me rio e faço piadas da situação. 
Mas o fato aconteceu e posso dizer que é uma das piores sensações para se sentir, inda mais por não estar associada a um alívio respectivo, como a maioria dos sofrimentos (um veneno sem antídoto). 
Num shopping com casacos de R$ 11 mil e diamantes de 30 (mil, claro, né, meu amor) a única coisa que eu queria naquele momento era paz; e não me refiro à paz mundial ou à anulação de qualquer stress, refiro-me à paz como normalidade, como estabilidade, como a capacidade de respirar, andar, olhar, pensar etc. Enfim, a capacidade.  
As forças negativas realçam as positivas, como num chiaroscuro barroco: prometi ali o meu melhor assim que escapasse e ficasse são; graças ao meu bom Deus, ou ao meu bom anjo, ou ao São Jorge, temos João são. Agora é comigo, aproveitar a sanidade - e a versão positiva da força do pensamento e do estrago brilhante que ela pode causar. 
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